Três Amigas; Bolero; O Sucessor
cobertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2024 | 2ª parte
Na continuação desta série de postagens, algumas impressões sobre uma biopic bipolar de Maurice Ravel, o surpreendente segundo longa de Xavier Legrand (lançado seis anos após a sua premiada estreia em “Jusqu'à la garde”/“Custódia”) e o mais recente trabalho daquele que é possivelmente o maior gênio da comédia romântica em atividade, Emmanuel Mouret.
Boléro (2024)
de Anne Fontaine
Ao encomendar a célebre peça musical do título a Maurice Ravel (Raphaël Personnaz), Ida Rubinstein (Jeanne Balibar) aconselha ao pianista a não se prender ao tema e buscar uma inspiração erógena, sensorial. A sugestão dada pela dançarina torna-se um desafio para a própria diretora Anne Fontaine.
Boléro se divide entre as facilitações tradicionais das cinebiografias do modelo wikipédia (seu verdadeiro tema é o mapeamento das raízes particulares desta célebre criação artística) e a proposta mais fluida de uma sinestesia extática. E é justamente nos momentos oportunamente incisivos que o filme, sob o véu manipulador do refinamento, opta pela mecânica da primeira opção.
Ao contrário do protagonista detido entre as simplificações da fórmula popular e suas pretensões artísticas particulares, a cineasta não extrai uma energia criativa daquela tensão. Em Bolero uma tendência continuamente anula a outra, provocando um confuso sistema de compensações. As necessidades da narração entram em conflito com as curiosidades abstrativas. Por exemplo, a tentativa de propor uma temporalidade melódica em movimentos de retorno ao passado para esclarecer o presente é traída pelo perfil esquemático do roteiro, caracterizado por uma necessidade imediata de apresentar os eventos por meio de diálogos expositivos.
Os momentos límpidos de inspiração, alheios ao esquema claudicante de Boléro, se devem a Raphaël Personnaz. O ator investiga uma relação sensível com os sons ao redor do personagem numa forma de lidar com as próprias emoções. Por breves momentos sua atuação instaura uma ambiência particular, cuja inibição revela a devoção de Ravel à musicalidade do mundo de maneira tão neurótica quanto pura. Fiel ao temperamento sutil do compositor, Personnaz busca transparecer um misto de fascínio, moderação e curiosidade diante do seu próprio medo da efemeridade. Tão complexo e fugaz quanto a emissão de um acorde musical.
Trois Amies/ Três Amigas (2024)
de Emmanuel Mouret
Um filme lancinante e ao mesmo tempo acolhedor em sua sinceridade cortante. De aparência simples e engrenagem complexa, Trois Amies reforça de maneira sensível a volatilidade como característica principal da condição humana.
Através de uma espécie de urdidura narrativa - o romance é a linha central por onde o humor irônico e o melodrama se entrecruzam - Emmanuel Mouret promove uma intricada teia de causalidades onde a permuta dentre as funções não fere a idiossincrasia de cada personagem. O professor Victor (Vincent Macgaine) nos narra as experiências das três amigas Joan (India Hair), Alice (Camille Cottin) e Rebecca (Sara Forestier) e seus parceiros amorosos, corações já maduros mas nem por isso endurecidos, ainda enredando-se num carrossel de delicadas mentiras e verdades sempre a mercê do destino.
A atenta coreografia dos atores em meio à trivialidade dos cenários cotidianos atribui uma dimensão existencial às suas atitudes, aproximando-nos ainda mais dos personagens. Nos filmes de Mouret os diálogos são de suma importância mas a psicologia das relações se completa através da encenação. Isto posiciona o seu método anedótico em uma intersecção entre as sensibilidades visuais de Truffaut e Rohmer.
Sugerido conforme as pontuações das breves cenas ambientadas no cinema, o tom reflexivo de Trois Amies se confirma quando percebemos que o seu conjunto se orienta em prol de uma irremediável crença romântica. O amor é reconhecido em suas complexidades mas Mouret em momento algum abre mão de enxergar a importância deste sentimento, mesmo que para isso necessite constantemente readequar a moldura dos afetos conforme as vicissitudes modernas.
Em meio a abraços e lágrimas, o principal efeito da instabilidade intrínseca à existência torna-se então a possibilidade fortuita de se obter o necessário (que nem sempre corresponde àquilo que desejamos) de maneiras inesperadas.
Le Successeur/ O Sucessor (2023)
de Xavier Legrand
Le Successeur é, ao mesmo tempo, um suspense freudiano questionador do determinismo em relação às influências ancestrais e um drama sobre a perecibilidade que delimita as identidades forjadas. Como no filme anterior de Xavier Legrand, o ambiente doméstico é representado sob um viés soturno, oprimido pela figura patriarcal. Elias (Marc-André Grondin), novo diretor artístico de uma grife francesa, retorna à Quebec para organizar o funeral do pai, com quem perdeu contato há mais de uma década. Lá, descobre que a sua herança é composta por segredos bem mais complexos do que a simples transferência de bens.
Recorrendo a um uso inteligente das telas de TV, celulares e tablets como meio de economia narrativa, Legrand operacionaliza uma mise-en-scène instigante, elevando-a ao princípio unificador entre as projeções internas do protagonista e as inconveniências do ambiente para o qual ele retorna. O impacto dramático do espelhamento geracional instituído no clímax do velório é fruto do equilíbrio que o diretor alcança perante o material que tem em mãos.
Ao somatizar o efeito dominó do triângulo psicológico medo-ansiedade-dor, o mistério - que reveste os códigos hitchcockianos com um certo cinismo perante a hipocrisia social, remetendo ao estilo de Claude Chabrol - é elevado ao nível trágico. Com isso, o drama sobre a incomunicabilidade congênita revela o seu propósito a favor do diálogo como um antídoto ao trauma. Evitar o confronto não seria uma forma de conduzir ao rompimento absoluto dos vínculos, e sim à manutenção despercebida dos velhos erros.