Yorgos Lanthimos + Jonathan Glazer + Hayao Miyazaki + 'Argylle' + Wim Wenders
filmes assistidos em fevereiro/2024 (1ª quinzena)
Poor Things/ Pobres Criaturas
de Yorgos Lanthimos [EUA/UK]
A mecânica é simples: o rigor solene de Lanthimos solicita que o espectador aceite suas excentricidades formais (mesmo que não façam o menor sentido na diegese para além do apelo estetizante), e, em troca, ele entrega um humor chinfrim, instantâneo, que é tolo enquanto pretende ser ácido, que se escora na espontaneidade mas é só vulgar.
Seu olhar para a protagonista vivida por Emma Stone é, no fundo, tão condescendente quanto o dos demais personagens masculinos. Inclusive, não faltam indícios de que essa é a mesma perspectiva de Lanthimos perante sua audiência. Exemplos: a necessidade em evocar frases de efeitos para tentar transfigurar os mitos que a própria narrativa reporta; a forma como o absurdo das situações que atravessam a autodescoberta da personagem também a envolve no apelo do ridículo - nisto, todo o suposto distanciamento da câmera se revela inútil; e, principalmente, a fisicalidade de Stone é, na verdade, um acúmulo de poses que o diretor necessita fragmentar pela decupagem, como quem está preocupado demais em evitar qualquer ambiguidade de raciocínio.
Em um mundo de formas opressivas e distorcidas, a reparação de POBRES CRIATURAS se dá pelo discurso programado, pela alteração de aparências e na lei do talião do ‘olho por olho, dente por dente’. Realismo fantástico sem metamorfoses, sem retórica, sem alteridade e destituído de quaisquer qualidades sensíveis.
The Zone of Interest/ Zona de Interesse
de Jonathan Glazer [EUA/UK/Polônia]
Ao invés de propor o desvelamento de conceitos, o dispositivo vigilante de ZONA DE INTERESSE estabelece uma contínua exposição de contrastes via diferentes meios: no interior da construção cênica, pelo choque de atmosferas, na própria textura do registro, pelo sarcasmo textual e entre o som e a imagem. O principal confronto, inclusive, se dá entre o presente e o passado. O Mal se manifesta através da História, tanto no campo da imagem (pelas fumaças nas bordas do quadro e nos clamores da banda sonora) quanto nas descrições técnicas e procedurais dos campos de extermínio, cujas consequências nefastas são perduráveis. É o contraste que mobiliza continuamente uma sensação de incômodo.
Na conclusão, a temporalidade é elevada à uma espécie de contraplano sintomático dos efeitos históricos: o atual apelo turístico e museológico de Auschwitz seria um desdobramento das higienizantes elaborações egocêntricas do casal Rudolf e Hedwig? Há um senso crítico sólido o bastante para a reflexão dos efeitos dessa memória trágica no mundo atual?
Tais perguntas recaem sobre o próprio filme de Glazer. Induzindo a um acúmulo impressivo ao invés da contiguidade do discurso metonímico, ZONA DE INTERESSE é vítima da própria frieza. Abstém-se do comentário sobre a barbárie e opta por um ponto-de-vista absorto ao recair noutro dispositivo, o da videoinstalação. A experiência sensorial é intermédio para uma alienação distinta, já não egóica, mas disfarçada de lirismo. Incursões verticais como as sequências em internegativo, o poema de Joseph Wulf e as elipses sugestivas são, no fundo, uma compensação vulgar para o depuramento estético.
Kimitachi wa Dō Ikiru ka/ O Menino e a Garça
de Hayao Miyazaki [Japão]
O universo emancipado de Miyazaki se situa no vão entre o real e a fantasia. A última gradativamente avança o terreno sem macular o tangível, viabilizando um fascínio visual que nunca recai no auto-deslumbramento.
Narrador habilidoso, ele manipula racionalmente as possibilidades oníricas na jornada de seus heróis, buscando a coerência entre o micro e o universal. A vulnerabilidade reside no instante em que a epistemologia desse mundo particular se relaciona diretamente com o arco de desenvolvimento do protagonista. O conceito da transmutação, orientador da própria cena, às vezes fica condicionado ao êxito dos simbolismos.
Em O MENINO E A GARÇA os momentos concentrados no luto são dotados de uma densidade emocional que não abre mão do íntimo. As alegorias e metáforas, entretanto, oscilam a narrativa. O diálogo final entre Mahito e Himi é sintoma dessa necessidade própria de elucidação. Ainda assim, prevalece a experiência encantatória desta cosmologia dotada de uma epiderme sensível, cujos efeitos tem alcances tão distintos quanto pessoais.
Argylle/ O Superespião
de Matthew Vaughn [EUA]
Apesar do texto fraco, este deslizamento de identidades ganharia mais personalidade nas mãos de um cineasta capaz de alternar entre realidades com maior graça e inteligência. Sob os cuidados de Blake Edwards, por exemplo, este elenco estrategicamente funcional renderia uma gozação formidável.
Ainda assim, há um humor cinético na dinâmica cartoon que Vaughn adota como prova de fidelidade ao lúdico em meio ao realismo fantástico. ARGYLLE (o filme; o livro dentro do filme) discorre em elaborações infinitas, propagando o desprendimento do verossímil através de uma arquitetura gameplay. As inventividades de sua trama metalinguística não deixam de ser uma ode à inspiração criativa.
Perfect Days/ Dias Perfeitos
de Wim Wenders [Japão/Alemanha]
Como a compreensão de Wim Wenders acerca da relação íntima entre a arquitetura urbana e a ação/inação humana saiu de ‘Alice nas Cidades’ e ‘O Estado das Coisas’ para chegar numa sensibilidade “viral-edificante-de-Facebook” (o passeio de bicicleta pelas ruas de Tóquio ao som de ‘Perfect Day’) ou, pior, num meandro publicitário rasteiro (a catarse emocional ao volante no plano longo em close-up, pavimentada por ‘Feeling Good’)?!?!?