A articulação rebelde de "Outubro"
no 1º volume da série 'Olhar em foco', o longa (quase) centenário de Eisenstein
A partir do clássico construtivista de Sergei M. Eisenstein, dou início à esta série mensal de textos concentrados no exame de um único filme por postagem.
A ideia é dedicar o espaço aos títulos que considero fundamentais, não apenas no intuito de compartilhar uma possível filmoteca dos sonhos mas também compilar minhas impressões para revê-las a cada revisionamento futuro das obras.
“Todos os enquadramentos nascem iguais e livres, os filmes não serão mais que a história de sua opressão; enquadre por exemplo um desenquadramento de Bergman, ou a ausência de enquadramento de Ford e Rossellini, ou sua presença com Eisenstein, você verá que se trata sempre de apaziguar alguma coisa, seu amante, os deuses, ou sua fome.”
(Jean Luc-Godard - “Uma verdadeira história do cinema”)
“A linguagem está mais próxima do cinema do que a pintura.”
(Sergei Eisenstein - “A forma do filme”)
Referenciando o famoso testemunho literário de John Reed em seu subtítulo estadunidense (“Os dez dias que chocaram o mundo”), Outubro é uma dramatização propagandística da Revolução Russa que levou o Partido Bolchevique ao poder. Dez anos após a destituição da monarquia czarista, o governo soviético elegeu dois cineastas para honrar esse aniversário histórico: Sergei M. Eisenstein (em alta pelo sucesso de seu longa anterior, “O Encouraçado Potemkin”) e V. F. Pudovkin. Ambas as produções foram lançadas em 1928: “O Fim de São Petersburgo”, de Pudovkin, encontrou uma recepção imediata mais favorável do que “Outubro”. Coube à história do cinema valorizar a inteligência das construções de Eisenstein (em parceria com Grigori Aleksandrov), tornando-o um exemplar digno de inesgotáveis análises acadêmicas.
O dinamismo das construções de Eisenstein em Outubro propaga a ideia de autoridade política como algo instável, sujeita à intervenção popular. As prerrogativas do poder cedem à capacidade de mobilização coletiva. É fácil rotular o filme como idealista, mas seus efeitos vão além do discurso marxista, uma vez que a consciência revolucionária adere à estrutura fílmica através da montagem.
A ideia de conflito perpassa toda a metragem. Nas equivalências pictóricas há, contudo, uma noção de mobilidade. A maneira como a objetividade dos planos de Eisenstein opera por meio de uma incitante estética cognitiva torna Outubro maior do que o seu apelo ideológico. Suas metáforas integram uma motivação única, a do espírito rebelde. Muito se fala do método figurativo eisensteniano, mas a densidade operística da montagem alternada na noite do dia 25 de outubro também fomenta o entusiasmo insurgente. Alí, o êxtase intelectual alinha-se ao estímulo dos sentidos. O poder é reconhecido de forma multifacetada, não só megalomaníaco ou nefasto. Promessas frutíferas advém a partir de sua acessibilidade.Marie-Claire Ropars-Wuilleumier, em sua análise estruturalista de fundamento linguístico, percebe em Outubro que “(...) em passagens conceituais (como a sequência dos deuses), a metáfora intervém como um produto da metonímia; enquanto, quando ela opera através da semelhança com a realidade e, não com a ideia, é o inverso que é produzido. Além desta diferença, uma constante permanece: a sobreposição das duas figuras, e a ruptura, que resulta disso, de toda figura estável (...) revelando o significado em vez de representá-lo”1. Trata-se de um raciocínio metonímico onde a “parte” precede o todo, mas não só isso; apenas por meio do aspecto geral é possível tecer comparações entre os movimentos interiores do filme, detectando assim as inversões a partir do equilíbrio. O movimento dialético entre o pensamento e a forma se dá através da assimilação do conteúdo.
Afinal, a proposta principal de Outubro não é o didatismo histórico ou mapeamento documental dos eventos. Suas motivações antinaturalistas são bem delineadas. Trata-se do princípio revolucionário em ação, transmitido por meio de uma dinamização lógica: constrói-se sentidos com a mesma agilidade em que se desmantelam ícones. No exercício expressivo de Eisenstein, a produção de sentido ultrapassa os limites da representação, assimilando na forma fílmica a aspiração radical, verdadeira base do discurso.
O paradoxo de operacionalizar a construção de uma significação ideológica acerca da destituição de uma autoridade, estabelecendo a própria diegese sob um regime disjuntivo, proporciona uma sensação de absoluta instabilidade. Essa tensão mobilizadora provém não só das representações imagéticas em si ou da velocidade da justaposição e colisão entre elas, mas da articulação conjunta de ambos os métodos (cujo resultado é ainda potencializado pelo páthos irônico da narração). O plano, em si, é tão independente quanto insuficiente; é necessário que ele se torne substância da montagem para que o filme opere os seus efeitos. A ideia da “parte pelo todo” é percebida na forma e também no fundo, de maneira distintas. A grandiosidade espetacular da revolução é a consequência da união acumulada desses componentes.A característica principal da política dessa forma material é a recusa à alienação. As comparações pictóricas induzem ao contínuo questionamento das instituições. Não é no zelo pelos mitos que se encontra a fé de Eisenstein, mas na mobilização dos homens em prol da consciência coletiva. Em contraposição à simbólica impotência das estátuas que representam os ídolos, a ação do proletariado (representada pelo movimento dos corpos dentro do plano e/ou da câmera) transmite, de maneira cinética, um questionamento visual de tom subversivo. A ação isolada, por mais direcionada que seja, não é o bastante. A força progressista deriva da aglutinação controlada de cada movimento.
Na análise de Rosalind E. Krauss, que parte de uma perspectiva materialista histórica, percebe-se uma consequência da “dramaturgia visual” ambicionada por Eisenstein (a qual se baseia não no interior da cena, mas através da montagem, conforme as potencialidades intelectuais do desenvolvimento dialético): Outubro é o equivalente fílmico localizado entre o salto da consciência revolucionária (que transcende os limites da realidade e disponibiliza o acesso ao futuro) e o salto da consciência visual (que vai além dos limites ordinários do espaço fílmico, compreendido tanto como a realidade do documentário e a realidade “artística”). Krauss afirma: “Eisenstein queria projetar aquele momento em que o acesso ao significado da história, por sua vez, dava acesso ao significado do espaço real, um significado que estava inequivocamente expresso no significado do poder político”2.
Em seu sistema construtivista, o realizador russo não perde de vista a “dinamização emocional do tema” - seu compromisso é “estético e político”, como garante Noel Carroll ao analisar a sequência “For God and Country”: “O método de criação da sequência é, portanto, influenciado ideologicamente, assim como o tema, pois a aspiração da técnica aqui é remodelar a consciência do público exercitando a faculdade analítica da mente”3.





Quase 100 anos depois, percebe-se que não importa o quão se intensifique a continuidade na produção audiovisual contemporânea por meio do aumento da velocidade da duração média dos planos. Ainda que abunde uma profusão de imagens ao nosso redor, circulando em um fluxo acelerado, permanecem intactas tanto a insurgência vibrantemente rítmica de Outubro quanto a capacidade dedutiva de suas construções. O segredo do dinamismo da descontinuidade não está na reiteração aleatória (e por isso mesmo indiferente), mas na arquitetura direcionada do raciocínio.
Oktyabr (União Soviética, 1928). Direção: Grigori Aleksandrov e Sergei Eisenstein. Roteiro: Grigori Aleksandrov e Sergei Eisenstein. Produção: Arkadiy Alekseyev. Fotografia: Eduard Tisse. Edição: Esfir Tobak. Música: Edmund Meisel. Elenco: Nikolai Popov, Vasili Nikandrov, Lyaschenko, Chibisov, Boris Livanov, Mikhalev, Nikolai Podvoisky, Smelsky, Eduard Tisse, Yuri Sazonov.
ROPARS-WUILLEUMIER, Marie-Claire. “La fonction de la métaphore dans Octobre”. Tradução para o inglês: Sister Mary Christopher Baseh.
KRAUSS, Rosalind E. “Montage October: Dialectic of the Shot”. Artforum, Janeiro de 1973.
CARROL, Noel. “For God and Country”. Interpreting The Movie Image, 1998.