No terceiro capítulo da série dedicada às impressões sobre a obra de um cineasta, Aki Kaurismäki (1957).
Anteriormente, Jean Garrett e Jacques Rivette.
“O que é então o cinema de Kaurismäki? Seus filmes exibem uma continuidade de narrativa, estilo e modo. Eles são em grande parte construídos sobre a mesma estrutura narrativa: normalmente, o protagonista é deslocado e isolado por uma viagem, um conflito ou outros acontecimentos inesperados, mas não incomuns; o personagem luta sem sucesso neste novo contexto para se estabelecer; finalmente, o personagem experimenta uma redenção diluída, secular. Esteticamente, os filmes baseiam-se com ecletismo na tradição do cinema de arte, mas também emprestam música e encenação da história do cinema e da cultura pop do pós-guerra. (…) Conexões intertextuais com Charles Chaplin, Buster Keaton, Jean-Luc Godard, Rainer Werner Fassbinder, Yasujiru Ozu e outros são recorrentes. A consistência estilística também é evidente na câmera estática dos filmes, na mise-en-scène anacrônica, na paleta de cores, na iluminação e no humor ironicamente sombrio. Embora os filmes sejam num certo sentido realistas, retratando problemas cotidianos da vida profissional e familiar, também exageram os seus detalhes realistas por meio de revelações melodramáticas sobre os fundamentos morais das lutas e problemas diários. Nesse sentido, os filmes compartilham muito com a literatura do século XIX que combina realismo e melodrama, a qual tem fascinado Kaurismäki. (…) Os personagens de Kaurismäki são desajustados, seu estilo é um amálgama do ecletismo pós-moderno e ele é um cineasta profundamente, embora estranhamente, político.” (Andrew Nestingen, ‘The cinema of Aki Kaurismäki: contrarian stories’ (2013), Columbia University Press)
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Varjoja paratiisissa/ Shadows in Paradise/ Sombras no Paraíso
1986 [Finlândia]
É frequente na obra de Kaurismäki a cena em que alguém faz um curativo no ferimento alheio, ainda na primeira parte da trama. Essa reparação singela é o gatilho para uma cooperação mútua de maior proporção.
Aqui, a reciprocidade se dá entre a busca pela mudança (Ilona, caixa de supermercado) e a espera pela novidade (o lixeiro Nikander), relação que o diretor propõe através de uma lógica material. A conexão sentimental é consubstanciada na dramaturgia (através de raccords, elementos cênicos, luzes dramáticas e trilha musical), enquanto surge um conflito de ordem exterior que os afeta (na ironia do enredo, onde o acaso estabelece uma diferença sócio-econômica entre eles).
Em meio à tensão, prevalece o salto conjunto para o desconhecido. Ao equilibrar a serenidade e as torrentes, o céu de Kaurismäki não perde o foco do essencial, daquilo que propulsiona a vontade dos seres apesar da sombra vigilante das instituições.
I Hired a Contract Killer/ Contratei um Assassino
1990 [Finlândia/ Reino Unido/ França/ Alemanha/ Suécia]
Viver é, inevitavelmente, adquirir expectativas e se pôr à mercê do acaso. Enquanto algumas se limitam a desapontamentos, outras beneficiam-se pela espontaneidade, como pequenos milagres do dia-a-dia.
Após fracassar na tentativa de suícidio, o metódico personagem vivido por Jean-Pierre Léaud torna-se mais instintivo. Kaurismäki, todavia, mantém a atmosfera noir sem dispensar o rigor da decupagem. Do breve estudo de personagem, a narrativa se transmuta em um policial às avessas para, só a partir disso, pacificar os termos e os seres através de um humanismo límpido. O rigor detalhista, similar ao thriller melancólico de Jean-Pierre Melville, aos poucos abre espaço para uma ironia social que transita entre o humor negro e o trágico (meio Jean Renoir, meio Marcel Carné).
É quando se percebe que este não é um filme a respeito apenas do protagonista desempregado, mas também sobre os anseios da vendedora de flores pela qual ele se apaixona e do assassino profissional contratado para executá-lo. Ao interligar os três vetores a partir dos demais componentes da história (todos da classe operária), esta circularidade sugere uma possibilidade de mudança no cotidiano através de singelas demonstrações de agenciamento, capazes de ultrapassar os ultimatos impostos pelas instituições.
Em I Hired a Contract Killer, nada é indeterminado ou meramente ilustrativo. De forma metonímica, cada plano compõe o discurso.
Kauas pilvet karkaavat/ Drifting Clouds/ Nuvens Passageiras
1996 [Finlândia]
Volta e meia surge, no interior da cena, um diálogo figural entre os atores e os quadros no décor, intuindo uma noção de lembranças do passado que se refletem nas pertinências do presente. O arco da protagonista Ilona, por sua vez, se resume num exercício de reabilitação. Após perder uma série de micro-momentos que sustentavam sua rotina, ela busca meios de restituí-los noutro cenário. Uma nova atmosfera satisfatória, entretanto, só será possível com o auxílio conjunto dos mesmos agentes que integravam as elaborações anteriores.
Juntos, a readaptação de Ilona e a planimetria de Kaurismäki proporcionam uma percepção de tempo histórico através do espaço (do “vir-a-ser”) tão específica quanto palpável. Reconhece-se o valor da nostalgia sem ignorar a urgência do agora: a mudança dos ventos sente o peso do anacrônico mas vislumbra as possibilidades. É insuspeita a influência de Frank Capra, ainda que menos no didatismo social do que na capacidade de união entre os indivíduos como forma de redenção.
Ao mesmo tempo que a plasticidade dos ambientes evocam a solidão moderna de Edward Hopper, a trama aposta numa solidariedade que não é ingenuamente altruísta. É uma espécie de empatia que se assume como contrapeso à austeridade do entorno, possibilitando a sobrevivência humana neste equilíbrio. A narrativa fílmica de Kaurismäki põe em funcionamento o catalisador emocional a partir da estrutura dos eventos. Só então se torna viável a propriedade sintática do plano como discurso (afetivo/político/crítico) sobre a realidade do mundo.
Mies vailla menneisyyttä/ The Man Without a Past/ O Homem Sem Passado
2002 [Finlândia]
Mesmo sendo um filme incontornavelmente pós-moderno (na combinação de elementos disjuntivos e no reconhecimento particular das formas históricas do cinema) é, ao mesmo tempo, anti-nostálgico (porque ausente de idealizações icônicas) e anti-neoliberal (em sua auto-suficiência e na resiliência da ética perante a valorização das aparências).
Na trajetória amnésica do protagonista M. não se tensiona passado e presente. A descoberta de sua identidade é caracterizada por uma ambivalência que se faz perceptível na ironia sustentada pelos diálogos, levemente mordazes. Ainda que M. jamais recupere a memória, a narrativa segue a par dele, vislumbrando indícios, oportunidades e conexões nas relações contingentes entre si. Até porque, antes de ser um homem sem memória, ele é o testemunho de uma ressurreição bem específica: morto para o Estado, disponível para o essencial (ou melhor, para a existência como experiência).
Em súbitos momentos de cumplicidade, Kaurismäki reafirma a interação comunitária não como uma vivência de classe, mas para enfatizar a intersubjetivação identitária. M. se torna o vetor de pequenas e substanciais redenções alheias, sopros de vida dados tanto à sua ex-esposa quanto à cadela Hannibal. Esta mecânica torna mais evidente o diálogo entre a sintaxe simplificada de Kaurismäki e o cinematográfo de Robert Bresson - a fisionomia sobrepondo-se à psicologia do personagem; a dinâmica expressiva entre os corpos e o entorno deles; a cena seguinte respondendo a anterior (negando ou afirmando-a); os efeitos antecipando as causas; a passividade do protagonista concentrando as relações com os demais personagens.
Há uma liberdade intrínseca neste homem ausente de registro social, jamais elevada à anarquia ou relegada ao miserabilismo.
Kuolleet lehdet/ Fallen Leaves/ Folhas de Outono
2023 [Finlândia/Alemanha]
Ainda nos créditos iniciais surge um ruído ritmado similar àqueles que indicam os sinais vitais no monitor hospitalar. Sua verdadeira fonte é evidenciada na primeira imagem: trata-se do verificador de códigos de barra num caixa de supermercado, onde a protagonista Ansa contabiliza uma pilha de carne bovina. Mais adiante, este mesmo som alcança um paralelo na trama, agora relacionado a Holappa, pretendente de Ansa, internado na UTI. Esse motivo sonoro proporciona circularidade ao eixo temático de Kuolleet lehdet: vidas em risco pela sobrecarga de uma rotina inexpressiva, à beira da falência existencial. Caberia uma salvação milagrosa?
Alheio às necessidades de identificação psicológica, Kaurismäki oferece uma compreensão dinâmica. O distanciamento obtido pela articulação calculada das esferas plásticas e simbólicas é o meio necessário para que a sua ideia alcance um efeito realista. As construções assumem uma energia pictórica enquanto as nuances dos personagens são reveladas por gestos mínimos. Nesta economia formal, cada plano é incumbido de uma função narrativa específica, de modo que a soma das partes é capaz de figurar o todo. Assumindo um grau sócio-econômico, as ambientações modelam o sentido do comentário histórico e político.
A poética de Kaurismäki estimula uma sensibilidade para além da estética, convocando um raciocínio que culmina na subjetividade dos indivíduos. Ao mesmo tempo, essa concisão possibilita quebras de expectativas no decorrer da trama, dando amplitude aos retratos individuais. Por exemplo, a cenografia até pode aparentar nostalgia, mas aos poucos vai se revelando como o índice de um atraso econômico que restringe os cidadãos no presente.
Esse regime de opacidade é convocado para a narrativa pela própria mise-en-scène no momento em que Holappa, pela moldura da janela do bar, adquire uma tomada de consciência através do distanciamento. É como se o personagem saísse do aliciante compasso tecnopop da dupla Maustetytöt para sacar a letra da canção que ouve, enxergando a si mesmo na descrição fatalmente depressiva. Enquanto Ansa desliga o rádio para sair do torvelinho compressor de notícias trágicas e sequências musicais de dor-de-cotovelo, o rapaz conclui que a real possibilidade de fuga do cotidiano proletário não reside no escape momentâneo do álcool.
Sobretudo, o que Kuolleet lehdet busca é a integração do romance (à estrutura do filme; à existência dos personagens) como símbolo máximo de cooperação. Só a partir disto as mudanças sociais, ainda que na esfera micro, podem ser vislumbradas. Kaurismäki reivindica os códigos da idealização romântica sem transfigurá-los, afinal, o happy end não é privilégio hollywoodiano e opera de acordo com o seu regimento. É uma aposta pelo direito básico à idealização mínima, mesmo que aos trancos e barrancos. Ou ainda, um milagre que se dá sob a forma de um enlace amoroso, o qual requer a dedicação mútua.
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‘Cinéma, de notre temps’: Aki Kaurismäki
de Guy Girard, 2001 [França]
disponível no YouTube
Considerando a expressividade sintética e evasiva de Kaurismäki, que não se furta à ironia, a relação entre realizador e obra se torna mais manifesta quando a ênfase ao seu meio de produção (independente) não se limita aos depoimentos. Para o diretor, economia é a regra para alcançar o essencial. É um caminho que Girard, mais atento a paralelos estilísticos, referências criativas e ecos residuais, nem sempre está disposto a traçar.
“Não sou um grande fã de filmes. A vida é muito interessante. Eu acharia lindo se as pessoas se tratassem melhor. Os peixes provavelmente lutam na água, comendo uns aos outros... mas essa batalha pela sobrevivência é outra coisa. Mas as pessoas têm literatura, os peixes não. As pessoas deveriam ser mais espertas, “vamos criar um sistema onde as pessoas não comam umas às outras”. Eu não vi nenhum vestígio disso. Mas a natureza é linda.” (Aki Kaurismäki)