Além das críticas quinzenais de lançamentos variados, inicio a série Mergulho Casual, de periodicidade mais esparsa. Nela, agrupo impressões sobre a obra de um(a) cineasta a partir do visionamento sequencial de alguns títulos.
A escolha dos filmes varia entre a curiosidade, o prestígio (ou o seu oposto) e a carência de revisão.
Hoje, Jacques Rivette (1918-2016).
“A personalidade do criador se manifesta, é claro, por sua “escolha” de ângulos e pela forma como ele joga com a retórica convencional, desde que o que ele queira mostrar seja diferente de um espetáculo anônimo e exija, se não um aparecimento completo, um olhar novo, mais curioso e despido de preconceitos, que possa por si só ser totalmente comensurável com o espetáculo. O universo comanda esse olhar, e o próprio olhar, ele mesmo impõe e cria esse universo; o universo do criador nada mais é do que a manifestação, a completa eflorescência desse olhar e modo de aparecer – olhar que nada mais é do que a aparição de um universo.”
(Jacques Rivette, ‘Já não somos inocentes’)
“Qual o objetivo do cinema? Que o mundo real, tal como é exibido na tela, seja também uma ideia do mundo. É preciso ver o mundo como uma ideia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, os dois com os seus riscos.”
(Jacques Rivette, ‘Rever Verdoux’)
“Se há um cinema segundo Rivette – sejamos também autoristas –, ele só pode ser o cinema do próprio Rivette. A fórmula, se alguma for necessária, é bem conhecida: a do segredo: “O que é fundamentalmente o cinema: este elo entre algo exterior e muito secreto, que um gesto imprevisto desvela sem explicar”.”
(Jacques Aumont, ‘O transmissor’)
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Céline et Julie vont en bateau/ Céline e Julie Vão de Barco
1974 [França]
Ao invés do País das Maravilhas, a curiosidade destas Alices irá alcançar uma serialização que mistura Louis Feuillade com o esquema melodramático. Só que a entrada para o próximo episódio requer uma senha lisérgica.
Bem desperto, o Vale das Bonecas não está mais catatônico, e sim disposto a romper com o trágico. Cada movimento felino e cada gargalhada de Céline e Julie proporcionam uma manifestação libertária através do acúmulo poético.
Rivette não dispensa a leveza performática, garantindo uma disposição intelectual dispersiva. Em meio a rotina mundana, a oportunidade do provisório está sempre disponível. Tal frivolidade propaga a capacidade da atuação como um gesto colaborativo, ofertando a liberdade de agenciamento através da troca de funções. Pregnante do questionamento às normas restritivas e do desejo de rompimento com a pulsão escópica, a investigação feminina convoca as molduras tradicionais; os ídolos Marilyn Monroe, Jane Russell e Marlene Dietrich são estilhaçados.
A recusa ao flashback somada à manifestação vivente da memória e do depoimento situam o filme num presente absoluto, onde o acaso magicamente se transmuta em destino. O desmantelar resultante do conflito entre o clássico e o moderno requer um fluxo contínuo, uma vigilância do despertar entre sonhos e realidade. A carta de tarot anuncia para Julie: “o futuro está no presente”.
Motivo de espanto e êxtase, CÉLINE ET JULIE desconhece o “fim”.
Duelle/ Duelo
1976 [França]
Um embate entre deusas na particularidade de uma perspectiva terrena.
O rigor modular e o exercício do noir promovem a encenação à uma espécie de tabuleiro cinematográfico potencializado pelo duplo, onde a articulação dos gestos atinge um peso figural. Distante da indecibilidade de filmes anteriores, Rivette expõe um desejo ficcional através dessa vontade ordenadora tão austera quanto flexível.
O diálogo conspirativo entre o mitológico e o humano se instaura na concretude diegética. Variando entre a sedução e o combate, os deslocamentos dos atores influenciam o desdobramento contínuo do olhar por meio de reflexos. Os elementos cênicos, ao circular entre os corpos, se tornam vetores fantásticos (potencializando o aspecto do desconhecido) enquanto o movimento de câmera adquire o efeito da prestidigitação.
Mas o segredo da dinâmica entre as aparências é elementar: trata-se, enfim, de assumir o controle estratégico da mise-en-scène pela própria percepção - o que possibilita também a tal "la vie parallèle", subtítulo do filme.
2 + 2 realmente não é = 4; 1 +1 = 1 + 1.
Merry-Go-Round
1981 [França]
Em meio à intriga policial assumidamente rocambolesca (uma espécie do hawksiano ‘The big sleep’, resumido pela opacidade dos diálogos) a aproximação entre homem e mulher se estabelece como o verdadeiro mistério, no seu aspecto mais difuso e instintivo.
A base verossímil onde consta a relação entre Maria Schneider e Joe Dalessandro possibilita uma investigação comportamental ao documentar as possibilidades desses atores em um tabuleiro teatral que se multiplica em ambientes fechados, resultando numa tentativa assumidamente falha de obter uma forma definitiva. É como se o enigma da narrativa viabilizasse o desprendimento das atuações e a multiplicidade de perspectivas, proliferando uma atmosfera de incertezas graças à presença incontornável do desconhecido.
Rivette assume esse fluxo pela ânsia da fragmentação, o que estimula o interesse - o essencial aqui é tanto o choque entre dois corpos excitantes quanto a maneira como o cineasta tateia esse confronto dentro do próprio circuito que constrói.
Os fins e os meios em um equilíbrio angustiante e ao mesmo tempo sublime.
La belle noiseuse/ A Bela Intrigante
1991 [França]
O conceito da arte como prática artesanal, projetado de maneira que os interesses voyeurísticos são solapados pela configuração cinematográfica do olhar.
Primeiro, a fluidez da decupagem acompanha concomitantemente a diferença perceptiva e o diálogo criativo que ocorre entre Frenhofer (o pintor) e Marianne (a modelo). A mise-en-place, por sua vez, é dotada de uma consciência pictórica atenta aos reenquadramentos que asseguram a variação dos ecos emocionais em Liz e Nicolas (seus respectivos parceiros amorosos), agentes indiretos da pintura em progresso.
Mas a forma equilibrada não basta, deseja-se algo a mais. Essa vigilância febril pela mínima vibração espontânea é recompensada por uma fascinação que brota do centro gravitacional do fazer artístico. De natureza fugidia, ela se dá numa continuidade bem específica - aquela cultivada por Frenhofer e Marianne, já experienciada por Liz na juventude e, paralelamente, alheia à imaturidade de Nicolas. Tratam-se de breves momentos translúcidos onde o esforço físico conduz a um movimento íntimo: o cansaço mútuo impelindo à comunhão do ato de desnudar-se, a respiração do pintor se tornando uníssona com os traçados no rascunho. Essa paixão que atravessa a criação obstinada tem suas raízes no âmago do artista, em ímpetos tão básicos quanto inexplicáveis.
Molduras multiplicam-se pela cena enquanto o tema da memória se consubstancia na ideia do retrato, em diferentes formas de teor ontológico. Este é, afinal, um veículo para a manifestação das emoções contidas nas relações amorosas. A pintura de Frenhofer que é publicamente vista só existe por causa daquela que ele mesmo escondeu, tal qual o próprio filme de Rivette. Seus efeitos, ao fim de tudo, confundem Nicolas, confortam Liz, alicerçam Frenhofer e movem Marianne.
Em nós, tudo isso converge na sensação de testemunhar um instante difícil de descrever, como se devêssemos nos manter calados para que a discrição de sua evidência permaneça intacta.
Ne touchez pas la hache/ Não Toque no Machado
2007 [França/Itália]
Aqui, ao mesmo tempo que há um direcionamento “horizontal” da organização das imagens visando um acumulo específico (prosa), a pontuação da música e dos ruídos em determinados pontos da narrativa ressoa uma evocação do elo íntimo entre Antoinette e Armand. Isto atribui uma ênfase poética, dando um caráter de puro presente a tais momentos de suspensão. Ao não dissociar matéria e experiência, tal atmosfera permite revelar a mediação do desejo, ou seja, a verdade romanesca.
As idealizações desse casal levam ambos à frustração por não perceberem como o outro as media (e a narração fílmica, ao expô-la, adquire a característica romanesca). Ela, a nobre, crê necessitar do êxito de uma encenação formatada pela aparência ideal; ele, o militar, limita-se à declaração descritiva das palavras, refém do poder do Verbo. Induzido pelos interesses sociais do entorno, o jogo de sedução alcança a fronteira entre a obsessão e a loucura.
A representação em NE TOUCHEZ PAS LA HACHE opera na intersecção entre o teatro e a literatura através de uma inteligência precisa. O gesto acomoda a palavra; a construção de cada plano revela um porquê; a decupagem das cenas está atenta à instabilidade emocional entre os personagens sem abrir mão da economia; e o encadeamento dos episódios abriga a incerteza, ora negando as expectativas, ora acatando as intenções.
Instituindo a fantasia/ficção a partir do concreto, Rivette alcança uma noção intuitiva pela lógica da linguagem.
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‘Cinéma, de notre temps’: Jacques Rivette - Le Veilleur
de Claire Denis e Serge Daney, 1990 [França]
Ao falar do filme de Patricia Mazuy (‘Peaux de vaches’), Rivette parece falar de sua obra: labirintos conspirativos onde as possibilidades de agenciamento alcançam uma atmosfera semi-onírica.
Na estrutura díptica assumida pelo documentário é irrefutável que o Rivette “crítico de cinema” é inerente ao “cineasta”, por mais que a profissionalização tenha preterido a primeira em favor da segunda. E o diferencial de sua obra se baseia na manutenção desta conexão limítrofe - ele talvez tenha sido o único dos Cahiers a manter vivo o olhar curioso de espectador, o que implicaria na sua aptidão como realizador, sempre a propor uma consistência diegética tão distinta quanto autônoma em seus filmes.
A timidez de Rivette é suspeita: suas mãos se movimentam ininterruptamente; o sorriso tem a docilidade malandra daquele que assente, mas no fundo prefere manter algo guardado só para si; e o olhar, embora pareça se perder, permanece atento ao seu mundo interno. Claire Denis é perspicaz em capturar tudo isso (afinal, privilegiar o corpo é uma das lições rivettianas) e Serge Daney sabe que necessita partir do fascínio cinematográfico para alcançar o seu entrevistado.
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A respeito de Rivette, Jacques Lourcelles diz em seu ‘Dictionnaire du cinéma' que o cinema francês perdeu um excelente crítico sem ganhar um cineasta. Mas é justamente o oposto, essa metamorfose só gerou dividendos.
Muito bom!