O Cinediário de hoje é quase um prolongamento da análise sobre a franquia “Missão: Impossível”. Estão em perspectiva quatro diretores cujas filmografias também conformam a situação atual do cinema de aventura/ação hollywoodiano e que lançaram novidades no circuito brasileiro nesses últimos dois meses: o norte-americano Ryan Coogler, os ingleses Paul W.S. Anderson e Alex Garland e o espanhol Jaume Collet-Serra. Aliás, com exceção de Garland, todos já tiveram incursão em algum tipo de franquia cinematográfica. A diferença é que, ao contrário daqueles eleitos por Tom Cruise na sua função de produtor, esses quatro nomes poderiam ser facilmente associados a um controverso projeto de crítica cinematográfica - em voga na década passada e hoje já demodé, conforme dita a instantaneidade cibernética - denominado vulgar auteurism. O propósito era valorizar diretores de filmes de gênero que, ao serem confundidos como meros artesãos anônimos pela crítica oficial, não tinham seus estilo e estética autorais devidamente reconhecidos. Sim, a questão era menos visual do que substancial. Entretanto, como o nome vulgar auteurism já denuncia, o apelo nada mais era do que um revival do autorismo dos anos 60, a velha ânsia crítica de detectar o trigo disfarçado de joio. Mesmo assim não há como negar que a versão 2000 tinha um inegável apelo iconoclasta no seu tom polemizante.
Quinto longa-metragem de um cineasta com duas indicações ao Oscar de Melhor Filme na bagagem (“Pantera Negra” e “Judas e o Messias Negro”), Pecadores (Sinners) é também a quinta parceria entre Ryan Coogler e o ator Michael B. Jordan. A novidade é que o astro interpreta gêmeos que, na década de 1930, retornam à cidade natal do Mississippi para abrir um bar de blues voltado para a comunidade negra local. O problema é que uma ameaça sobrenatural intervém na noite de abertura. Lançado mundialmente em abril, Pecadores já é um dos maiores sucessos de público e crítica do ano. É ainda o primeiro filme de Coogler baseado numa ideia original própria, embora lide com as temáticas de justiça social e cultura racial onipresentes em sua obra.
O sempre polarizador Paul W.S. Anderson mira noutro artista com uma fanbase forte e exigente: o escritor George R.R. Martin, da série “Game of Thrones”. Seu título mais recente, Nas Terras Perdidas (In The Lost Lands), é uma adaptação do conto homônimo aprovada pelo autor original e estrelada por Milla Jovovich e Dave Bautista. Jovovich, esposa de Anderson, já colaborou com o diretor em outros sete longas. Voltado para a ficção-científica, a aventura e as adaptações de videogame, o estilo característico deste cineasta angaria em mesmo nível fãs e detratores: um uso excessivo de CGI com a intenção não de tornar um cenário distópico o mais realista possível, mas de explorá-lo sob um viés artístico, como se o frame pudesse se converter numa tela em óleo. Quase um impressionismo digital.
O sucesso de “Guerra Civil” no ano passado provavelmente fez Alex Garland voltar atrás nos seus planos de aposentadoria. Em seu novo filme, o diretor e roteirista inglês de 55 anos permanece em território bélico mas redireciona sua a atenção da alegoria política para o procedimento tático militar. Tempo de Guerra (Warfare) é um lançamento da A24. Em busca de veracidade representacional e precisão estética, Garland divide a direção com Ray Mendoza (cuja experiência como ex-fuzileiro naval na Guerra do Iraque serviu de espinha dorsal para a construção do roteiro) e tem à disposição um elenco masculino de jovens adultos em ascensão hollywoodiana (Will Poulter, Kit Connor, Joseph Quinn, Charles Melton, Noah Centineo, Cosmo Jarvis).
Pela Blumhouse, grife de prestígio popular no cinema de horror contemporâneo, Jaume Collet-Serra lança o seu melodrama gótico A Mulher no Jardim (The Woman In The Yard). Protagonizado por Danielle Deadwyler, o projeto sucede um grande fracasso de Collet-Serra (o longa da DC “Adão Negro”) e um grande sucesso (“Bagagem de Risco”, para a Netflix). Nele, uma mulher de preto traz um anúncio perturbador ao surgir no jardim de uma família em luto pela perda do patriarca. O resultado fez Collet-Serra permanecer no mesmo status de sua carreira: realiza filmes de gênero com qualidade acima da média da produção contemporânea, mas seus feitos são pouco reconhecidos pela crítica de maior abrangência.
Sinners
de Ryan Coogler (EUA, 2025)
Entre o ensaio e o espetáculo, a ambição de Ryan Coogler por materializar a força mística do blues encontra respaldo no ritmo da narrativa, qualidade central de seu longa-metragem.
Tal eficiência é mais uma questão a respeito da decupagem do que da dramaturgia: para encadear a apresentação dos personagens e desenvolver as relações entre eles em contiguidade, a estrutura de Pecadores segue um padrão onde duplicam-se os elementos a fim de intensificar os conflitos. A violência irrompe dessa mecânica brutal, em faíscas constantes. A transição do western para o horror garante o impacto gráfico (até porque as convenções do segundo potencializam as do primeiro), mas a brutalidade se faz onipresente, seja através de diálogos cortantes ou reações abruptas, como uma sombra incontornável a perseguir ‘o local mais sulista da Terra’. É onde se localiza a vocação gótica do filme, que em compasso com a veia musical proporciona uma liga climática àqueles dois gêneros primitivos.
Do embate mítico no nível da ancestralidade, Coogler tenciona a capacidade de ultrapassar os limites de tempo e espaço a fim de alcançar as conotações políticas, sociais e religiosas propostas pelo enredo. A ambição roça a ganância. Mesmo que o discurso do diretor apenas tangencie tais propósitos superficialmente em sua carpintaria áspera - por diversos momentos as concessões formais superam os instintos artísticos - Coogler não deixa de estabelecer uma encenação envolvente e esteticamente expressiva ao longo de toda a projeção.
In The Lost Lands
de Paul W.S. Anderson (EUA/Alemanha/Canadá, 2025)
Uma vez que o olhar de Paul W.S. Anderson está cada vez mais concentrado no espetáculo visual proporcionado pelo seu cinema de grafismo virtual, não é de se estranhar que a solução do diretor para lidar com a trama tão característicamente folhetinesca de George R. R. Martin seja enxugá-la ao nível das aparências. Curiosamente, essa tática não reduz a propagação da dimensão épica entre os personagens-tipos e os eventos que os conectam direta ou indiretamente, tampouco restringe a autonomia dos episódios. Pelo contrário, torna mais nítido o sentido geral do enredo rocambolesco de Martin, invocando a essência primitiva da garra e da volúpia que reside em cada silhueta arquetípica.
Até porque o apelo plástico da estética de Anderson disponibiliza uma espécie de transe vaporoso (por vezes dispersivo e arbitrário) às eletrizantes sequências de ação, mesmo que o desenvolvimento dramático em si seja reduzido ao básico. A proposta do cineasta é recusar a verossimilhança realista dos efeitos visuais em prol do artifício exagerado na representação, absorvendo na imagem a teia de farsas da história. Isso se dá por meio de uma mecânica onde priorizam-se os movimentos cinéticos e os olhares objetivos dos corpos, ambos desprovidos de significações suplementares.
Penso que a questão em Nas Terras Perdidas é menos regressar ao âmago da expressão cinematográfica do que averiguar os resquícios face ao desgaste ocasionado pelo uso desmesurado das convenções da aventura no cinema blockbuster. Um empreendimento que, felizmente, se recusa a abdicar das infinitas possibilidades estéticas que a tecnologia VFX disponibiliza. Em suma, o propósito de Anderson visa intensificar a essência da epopéia por meio do artifício plástico - o que não significa necessariamente concentrar-se apenas na superfície da imagem, mas reivindicar tais propriedades para fins contingenciais de tempo, espaço, ritmo, etc. É essa intenção de dar à fantasia um status puro através da fotogenia o que diferencia seu temperamento criativo daquele sondado por Zack Snyder (quem, no fundo, morre de medo de encarar os limites dos códigos dominantes da representação cinematográfica), por exemplo. Noutro nível de comparação, a inspiração revigorante e a mestria no uso das operações épicas enquanto procedimento narrativo são o que valorizam a potência imediata do cinema de ação realizado por George Miller, dois atributos menos presentes no projeto de Anderson. O trabalho de Miller é dotado de uma organicidade latente, tal como uma noção cósmica, enquanto a capacidade de produzir narração nos filmes de Anderson é por vezes enfraquecida pela simplificação da arregimentação cênica.
Ainda assim, o futurismo medieval de Nas Terras Perdidas detém um efeito particular. Ao alavancar o teor fantástico da temática pós-apocalíptica, Paul W.S. Anderson irrevogavelmente subordina o longa-metragem à perspectiva mística, ou seja, àquela da bruxa vivida por sua atriz-fetiche, Milla Jovovich. E de fato, este é, em seus melhores momentos, um filme capaz de hipnotizar a visão.
Warfare
de Ray Mendoza e Alex Garland (EUA/UK, 2025)
Verossimilhança sem verdade, realismo destituído de materialidade.
O disclaimer introdutório e a prestação de contas na conclusão parecem querer blindar Tempo de Guerra de quaisquer acusações de espetacularização militar. Acho que o mais importante pro Alex Garland não é o estabelecimento de uma atmosfera em si e o exercício dela enquanto experiência brutal, mas o interesse supérfluo pelas possibilidades que ela pode(ria) oferecer - as quais permanecem inalcançadas diante de sua pouca eficiência enquanto realizador. A satisfação com essa mera virtualidade uniformizada é periclitante, ainda mais lidando com a seriedade irrevogável contida na temática bélica.
No caso, o objetivo primordial de Tempo de Guerra é a busca pela autenticidade enquanto documento. Garland só se aproxima desse conceito enquanto assume a guerra como um estado-das-coisas incontornável, maior do que a vontade dos personagens (mesmo que o único meio pelo qual a sua direção concretiza isso seja através da banda sonora, de modo extremista). O conjunto de falências acaba por empedernir o lado humano do filme - onde se localiza a contribuição testemunhal de Ray Mendoza -, enfraquecendo a ação vetorial das linhas dramáticas estabelecidas pela trama. Isso implica em prejuízos na representação da vivência sob o conflito armado: a depuração procedural se transforma em burocracia; a fraternidade se limita a uma troca pueril; o cansaço vira aborrecimento; o desespero desgasta a tensão perante as ameaças da tragédia; e o senso de gravidade se dispersa. Até porque, convenhamos, para lidar com o desenvolvimento narrativo mínimo exigido pelo roteiro, Garland recorre aos métodos expositivos mais banais.
A impressão resultante é a de um grupo de atores entusiasmados operando como soldadinhos de chumbo num grande simulador de guerra, cujo agente manipulador se satisfaz com a chance de emular um realismo que preza menos pela sensibilidade imersiva do que pela descrição fidedigna.
The Woman in The Yard
de Jaume Collet-Serra (EUA, 2025)
A retração que caracteriza a composição cênica em A Mulher no Jardim é sintoma de seu substrato dramático, refratado em todo o filme a partir da condição física e psicológica da protagonista. Uma mãe catatônica, de vivência atrofiada pelo luto relacionado à perda do marido. O definhamento das capacidades locomotoras provêm dessa devastação na alma, restringindo a psique num circuito depressivo de inseguranças e remorsos. A cena onde Danielle Deadwyler se depara com a anomalia do título comprova a inteligência formalista de Jaume Collet-Serra, capaz de estabelecer num mesmo ambiente aproximações de diferentes escalas no nível psicológico e espacial.
A costumeira eficiência de Collet-Serra diante de cenários claustrofóbicos potencializa o arco do herói (ou heroína) cujo maior inimigo a ser confrontado(a) é, no fim das contas, ele/ela mesmo(a). Em A Mulher no Jardim, a combinação entre os movimentos de câmera (e suas respectivas angulações), o uso delimitado do foco (e a profundidade de campo resultante) e os limiares sugeridos pelos objetos de cena estabelece uma atmosfera capaz de demarcar os espaços limítrofes que descrevem as relações emocionais num ambiente familiar marcado não só pela angústia aparente. A situação estanque do luto coloca mãe e filhos frente à frente com seus medos e ressentimentos. A única saída é encarar o próprio reflexo. Inclusive, o labirinto de projeções internas refletidas em molduras e espelhos dão um ar quase barroco à estética do longa, tragando o conjunto para a essência melodramática de sua trama - a qual, por sua vez, vem alimentar a fantasmagoria que materializa o terror psicológico. Em um filme onde a visão sustenta a tensão entre a autenticidade e o conteúdo latente na própria textura de sua imagem, o fenômeno da persistência retiniana se estabelece como o método basilar da representação: ilusão ou pesadelo de uma percepção distorcida pelo esmorecimento, onde a cada momento as neuroses testam os limites afetivos dos elos sanguíneos.
Num mundo onde as imagens se inserem no cotidiano de maneira cada vez menos confiável, os filmes de Jaume Collet-Serra vêm progressivamente questionando não o índice de verossimilhança, mas a tensão causada no indivíduo e seus efeitos na “roda da vida”.
Rafael, uma sugestão que, espero, não soe impertinente: se possível, você poderia repassar as "estrelas" do Letterboxd para os textos daqui? Talvez fosse interessante adicionar a "nota" às suas sempre iluminadoras resenhas.