'Missão: Impossível', do início ao fim
De De Palma a McQuarrie: possibilidades autorais no cinema de ação através da franquia estrelada e produzida por Tom Cruise
É época de Festival de Cannes e, seguindo o perfil adotado nas últimas edições, o glamour da crítica que elege os produtos a serem cultuados no resto do ano até desaguarem nas indicações da próxima edição do Oscar também abraça blockbusters dispostos a dedicar sua premiére à Croisette. Repetindo a estratégia bem-sucedida de ‘Top Gun: Maverick’, Tom Cruise deu o ar da graça para o lançamento de Missão: Impossível - O Acerto Final e faturou cinco minutos de aplausos de pé após a projeção. Pompas à parte, a Paramount Pictures garante que este é o último longa da saga.
Baseada numa série televisiva dos anos 1960, a franquia Missão: Impossível se tornou uma das mais rentáveis da história do cinema. No papel de Ethan Hunt, o habilidoso espião da agência de elite Impossible Mission Force, Tom Cruise mantém o protagonismo há cerca de 30 anos. Já os diretores variam, o que torna a franquia num exemplo de panorama estético e formal do blockbuster de ação produzido em Hollywood nessas últimas décadas. Também produtor dos oito filmes já realizados, Cruise não deixa de propor uma influência artística graças à reincidência ativa de sua figura. O resoluto sorriso cintilante do astro está à serviço de um jogo de dissimulações em prol da salvação da humanidade. Tarefa árdua, que geralmente afeta as demandas mais íntimas do personagem. Com o passar dos anos, Ethan Hunt começa a sentir o peso dessa inibição, ao mesmo tempo que a profissão se afirma como uma necessidade vital. É quando sentir-se vivo se confunde com o frisson do perigo. E Cruise, por sua vez, adora divulgar que recusa ao máximo o recurso dos dublês nas sequências de ação. Deixando de lado uma possível “política dos atores”, mais evidente graças à indefectível presença midiatizada de Cruise, busco neste texto detectar o nível de influência dos cineastas que já entraram em contato com o universo de Missão: Impossível. De maneiras e possibilidades distintas, cada um deles tentou lidar com os limites inspiracionais e inventivos impostos pela arquitetura high-concept autenticada pela máquina industrial de Hollywood.
Foi sob a batuta de Brian De Palma que o reboot foi inaugurado, em meio à década mais brilhante deste que se tornou um dos realizadores mais (re)valorizados pela cinefilia contemporânea (pra se ter uma ideia, Missão: Impossível foi precedido por ‘O Pagamento Final’ e antecedeu ‘Olhos de Serpente’). John Woo, influente cineasta do cinema de ação oriental, já havia sido cooptado por Hollywood para trabalhar com Jean-Claude Van Damme e Nicolas Cage quando dirigiu a primeira sequência da franquia. Neste, notam-se algumas de suas características estéticas nas sequências mais vibrantes: o slow motion, o bullet ballet e as referências às artes marciais. O terceiro filme foi dirigido por J.J. Abrams, ainda estreante em longa-metragens mas já reconhecido pela criação de séries populares como ‘Lost’ e ‘Alias’. Abrams demonstra aqui o clima nostálgico que nortearia a sua futura carreira em Hollywood - uma trajetória de bastante êxito, inclusive (atualmente, Abrams é o décimo diretor mais lucrativo de todos os tempos). Por falar em hit, Brad Bird vinha de dois fenômenos consecutivos na Disney - os Oscarizados ‘Os Incríveis’ e ‘Ratatouille’ - quando dirigiu o seu primeiro live action: a 4ª parte de Missão: Impossível. A sensibilidade de Bird quanto à cinética dos corpos e às possibilidades menos óbvias de se explorar o espaço se fez perceptível nas sequências de ação. Contudo, os quatro filmes seguintes (de 2015 à 2025) caberiam a um mesmo cineasta: Christopher McQuarrie, com quem Tom Cruise colaborara antes em ‘Jack Reacher’. McQuarrie despontou na indústria americana na função de roteirista, conquistando diversos prêmios em 1995 com ‘Os Suspeitos’. Como diretor, ele se dedicou exclusivamente à saga Missão: Impossível nos últimos dez anos - e é possível detectar como a sua linguagem evoluiu à medida que suas referências vão se modificando.
Mission: Impossible (1996)
de Brian De Palma
É curioso observar como o primeiro Missão: Impossível já concentra a dosagem fielmente equilibrada de dois motivos muito discutidos na crítica de cinema contemporânea: a aplicação vulgar de um possível cinema maneirista e o desejo de imputar (à fórceps) o conceito de cinema de auteur no maquinário hollywoodiano de proporções astronômicas que formata os produtos da Marvel/DC.
O filme dirigido por De Palma resiste como um raro exemplar onde o realizador consegue aplicar as particularidades de sua viga-mestra (a atitude estética, as obsessões temáticas e a sensibilidade moral) num produto de grande estúdio, dotado de orçamento robusto e altas expectativas (tanto dos produtores quanto da audiência), executando-o sem violar ou renegar a natureza de sua origem, partindo dela para algo novo, inédito porque está munido desta assinatura própria.
Em plenos anos 90 - década do pastiche pós-moderno hiperestilizado, autoconsciente e viciado na reciclagem iconoclasta - De Palma parte das regras do gênero de espionagem para fazer um ensaio reflexivo sobre a maquinação do olhar a partir da elaboração de uma cena e da fruição de seu resultado, referindo-se ao prazer pelo exercício das falsas aparências e do duplo (ideia refletida na própria estrutura díptica do roteiro de Robert Towne) e formatando tudo isso através de um regime de imagens saturadas dotadas de ângulos instáveis, não-confiáveis. Enfim, um estratagema que raciocina imagens através de imagens e que é nada mais, nada menos do que um elogio ao ilusionismo (no fim do século XX, estaríamos de volta à sedução cinematográfica da década de 1900?).
Muito se transformaria com a oficialização de uma franquia ocorrida a partir do segundo Missão: Impossível, mas este longa inicial é como um instante isolado que, a partir dos subsequentes rumos do cinema de ação norte-americano, torna-se cada vez mais precioso na filmografia de Brian De Palma.
Mission: Impossible 2 (2000)
de John Woo
Mudança brusca de tom já na abertura: do universo estabelecido por Brian de Palma, o filme de John Woo só recupera a farsa, elemento para o qual a narrativa retorna compulsivamente. Se no filme anterior as encenações eram planejadas com o mero intuito de ludibriar, aqui os personagens manipulam uns aos outros para garantir a sobrevivência. Missão: Impossível migra da espionagem para um cinema de ação autocentrado, cuja arquitetura refere-se bastante ao reboot dado na franquia 007 a partir de ‘Goldeneye’ em 1995 (características: a veneração à tecnologia; o estereótipo atualizado da bondgirl; o apelo exótico do filme travelogue; os gratuitos aforismos de ironia insolente).
Ao longo de Missão: Impossível 2 há três níveis competindo entre si: o auto-deboche (não envelhecido) do roteiro de Robert Towne, que satiriza a artificialidade da própria estrutura da trama de espionagem; o ego do produtor Tom Cruise, que impõe vaidosos planos de ação para o seu personagem; e a direção de Woo, voltada para uma cosmética gameplay regida por episódios de intensidades imediatas, que lida com o protagonista dispondo-o em constantes reconfigurações espaciais ordenadas por novos obstáculos. Entre as sequências de suspense e/ou ação, Woo embute o jogo de aparências numa fraquíssima cadência dramatúrgica. Nos breves lapsos em que o diretor se rende ao logro oferecido por Towne - não por malícia, mas por inocência mesmo - Missão: Impossível 2 ganha fluidez. Até a celebração egóica de Cruise adquire um porquê narrativo.
Contudo, o melhor momento é o grande clímax final, quando Woo finalmente tem liberdade para assumir o filme por completo. É um conflito estilizado entre o-bem-e-o-mal, cujo movimento centrífugo da cena vai do pareamento entre automóveis de diferentes escalas até o corpo-a-corpo dos atores, momento em que a fragilidade da matéria se torna perceptível através das colisões (na composição cênica, na estrutura dos planos e na textura da imagem). Essa relação sensorial com o espaço e o tempo, estimulada por uma urgência perene que jamais se torna caótica ou histriônica, faz jus ao currículo do diretor em Hong Kong.
Depois dessa apoteose hiperativa, enquanto a narrativa burocraticamente enfileirava conclusões para o enredo, fiquei me perguntando que rumos o Tony Scott de ‘O Último Boy Scout’ ou o John McTiernan de ‘Duro de Matar’ poderiam ter dado à série - se o ego de Tom Cruise se domasse à tais concepções, claro.
Mission: Impossible III (2006)
de J.J. Abrams
Depois do ilusionismo tecnológico-imagético na espionagem maneirista de Brian De Palma e do terrorismo bioquímico no cinema gameplay de John Woo, a nostalgia inata (embora não saudosista) de J.J. Abrams oferece à franquia de ‘Missão Impossível’ uma aventura de molde retrô-1980’s - algo entre as produções fantásticas de Richard Donner, Chris Columbus e Steven Spielberg. A ideia não é distrair o espectador com mirabolâncias e acrobatismos, mas aproximar-se dele através de uma atmosfera mais realista (vide como a mágica do disfarce de faces é destrinchada aqui).
Em Missão: Impossível 3 o ritmo da narrativa diminui: os eventos intensificados são pontuais e uma progressão planejada caracteriza a construção da catarse. Abrams trabalha com eficiência a urgência do tempo-limite por meio de uma cronologia cinética e sensorial, variando temporalidades distintas ao longo de uma mesma sequência. O diretor, todavia, perde o controle quando lida com as consequentes catástrofes, sempre de maior escala. O longa vira então um produto sub-Doug Liman (da trilogia “Bourne”).
Por outro lado, há um olhar específico para os afetos. Essa perspectiva é capaz de garantir unidade à abordagem realista almejada pela trama, alimentando uma atmosfera que solicita de maneira contínua a cooperação entre os personagens como forma de resposta à necessidade da sobrevivência. E é essa conexão emocionalmente solidária entre os corpos que Abrams valoriza nas cenas, por mais que o desenvolvimento do roteiro seja regido por uma cartilha dramática um tanto básica. Recorre-se à cerimônias como meio de pontuar um enredo cujo intuito primordial é humanizar Ethan Hunt através de sua vida privada. É menos uma tentativa de domesticação da sua natureza selvagem do que a busca por algum um ponto de maturidade na trajetória do personagem. O protagonista de Tom Cruise agora anseia por algo mais estável do que as altas taxas de periculosidade da profissão.
Ainda assim, a moral de Missão: Impossível 3 é ciente de que a espionagem é para Hunt/Cruise mais do que mero ofício. Trata-se de um talento. A verdadeira missão impossível torna-se então conciliar o conceito padronizado de “família” entre dois universos que, inicialmente, necessitariam conviver em paralelo. E é por isso que o artifício do “pé de coelho” é mero macguffin; o motivo central é o material humano como o bem insubstituível a ser preservado. Tanto que o potencial do grande vilão acaba esvaziado e seu melhor momento, sem dúvidas, é quando ainda está sob a “influência” de Tom Cruise. Sorte da produção contar com um ator tão bom como o saudoso Philip Seymour Hoffman para dar conta dessas sutis diferenças em sua performance.
Mission: Impossible – Ghost Protocol (2011)
de Brad Bird
O diferencial de Missão: Impossível - Protocolo Fantasma é oferecer uma densidade elástica e uma variação rítmica, tanto na disposição dos corpos quanto na exploração espacial. Essa plasticidade remete às animações de Chuck Jones na Warner, cujos gráficos são caracterizados por uma lógica de movimentos fugazes e humor perspicaz. O ilusionismo cinético de Brad Bird assume a inconsequência como um entretenimento hedonista, mas essa dinâmica visual nunca desqualifica a narrativa com uma intensificação generalizada. Sem arrogância, a aptidão de Bird abraça a grandiloquência da produção: de forma consciente, explora as possibilidades cênicas a fim de valorizar a ambivalência das expectativas entre o que é visto e as surpresas localizadas no extraquadro. A articulação torna a monumental sequência situada no arranha-céu em Dubai em um espetáculo da tensão.
O estilo de Bird atribui um aspecto sobrehumano à figura de Ethan Hunt, inserindo Protocolo Fantasma numa atmosfera de super-herói - não à toa, nesta época Tom Cruise já perdia para os artefatos da Marvel/DC nas bilheterias. Mas, diferentemente da maioria desses produtos, Bird acata a ambiência realista da trama sem ceder ao apelo pela verossimilhança: a qualquer momento, tudo pode acontecer. O que não significa que o filme se deixe levar pela arbitrariedade. Os prazeres do incerto se combinam ao ritmo de uma trama que não se prende os eventos à medida que os desenvolve, assim como o enredo atribui um poder descomunal ao vilão, ao ponto dos efeitos nefastos perpassarem sua própria existência. A consequência negativa desse espírito irresoluto é que certos apelos dramáticos esbarram na superficialidade, como as relações interpessoais entre os personagens.
O motif da máscara facial, que era um dispositivo surpresa em 1996, foi desgastado pela narrativa em 2000 até ser esmiuçado em 2006, agora (literalmente) se rasga e deixa de caber no protagonista. Enquanto os três filmes anteriores dissociavam esteticamente dentre si, Protocolo Fantasma é o primeiro a demonstrar uma consciência perante aqueles imaginários visuais ao mesmo tempo que mantém uma unidade estilística com inspirações bem próprias.
Mission: Impossible – Rogue Nation (2015)
de Christopher McQuarrie
Com a chegada de McQuarrie na direção, o emblema de Tom Cruise se afirma definitivamente como o epicentro da franquia. O ator/produtor/dublê-de-si-mesmo reflete em sua figura a própria grandiloquência sisuda que a produção almeja. Ethan Hunt é: a) aquele que tudo vê e tudo sabe; b) indestrutível na terra, no ar e na água; c) líder de um subgrupo que é a intersecção entre a CIA e o secreto IMF. Um homem, enfim, acima do bem e do mal. Buscando refinamento, a trama se eleva à conspiração política mas resolve suas definições basicamente por meio de diálogos expositivos.
Consta em Missão Impossível - Nação Secreta uma dupla tentativa de retorno: à lógica gameplay do segundo filme e ao engendramento da farsa através do engano da visão, como no longa seminal. Contudo, destituída da inteligência de Brian De Palma, da personalidade de John Woo, da espontaneidade de Brad Bird e da eficácia narrativa de J.J. Abrams, a direção de McQuarrie opera randomicamente. Ainda sem uma assinatura particular, seu estilo evoca diferentes atmosferas como a tensão hitchcockiana, as reviravoltas implausíveis de Guy Ritchie, as perseguições dopaminérgicas de Justin Lin na série “Velozes e furiosos” e a verossimilitude sofisticada de Sam Mendes perante o gênero de ação na fase Daniel Craig dos ‘007’. McQuarrie refinaria significativamente sua técnica no próximo longa da série.
Os setpieces de Nação Secreta são grandiosos, repletos de possibilidades espaciais (sobretudo a sequência da operação marítima em Casablanca). Apesar do modo burocrata da direção, o interesse se mantém ativo graças à dinâmica da narrativa nos momentos em que dispensa o falatório e se assume absurda. Quando o frenesi abre espaço para a sinergia de um elenco de funções básicas e bem articuladas - Ilsa Faust (Rebecca Ferguson) é, disparado, a personagem feminina mais frutífera da franquia -, a cadência também se beneficia. Ou seja, em ambos os casos, Nação Secreta melhora quando o ritmo se concentra naquilo mais elementar: movimento e duração.
Mission: Impossible – Fallout (2018)
de Christopher McQuarrie
Quem dá um salto espetacular em Missão: Impossível - Efeito Fallout não é apenas o corpo de Tom Cruise, mas também a direção de Christopher McQuarrie: há uma evolução qualitativa de ‘Nação secreta’ para cá.
McQuarrie explora de maneira prática inteligente e a cartografia de cena, valoriza o confronto corpo-a-corpo como um choque visual de forças (inclusive através da noção do duplo, recorrendo a paralelos entre Tom Cruise-Henry Cavill e Tom Cruise-Rebecca Ferguson), engendra o ilusionismo da farsa assumindo a encenação como um espetáculo e, durante as perseguições, atenta-se às temporalidades intrínsecas de cada agente no intuito de edificar o suspense. Só a sequência no banheiro do Grand Palais já supera em eficácia cinematográfica (mise-en-scène, edição, planimetria, etc.) qualquer um dos eventos monumentais do filme anterior. Inclusive, McQuarrie se atenta a um regime de escalas (até quanto à razão de aspecto da imagem) que, progressivamente, converge tudo a um centro comum, mais íntimo, em uníssono com o desenvolvimento narrativo. Os confrontos vão se desvelando até alcançar o nível essencial: a relação entre Ethan e sua esposa, motif que abre o filme. O conjunto desses procedimentos dá um sentido particular à busca incessante pela opulência de um grande espetáculo que quer se legitimar como tal, meta assumida pela franquia ao longo dos anos (ora menos dissimulada, ora mais). Neste sentido, diametralmente oposto ao longa seminal de Brian de Palma, Efeito Fallout só perde para aquele num possível ranking dos longas da série.
Ainda que a trama de espionagem per se seja despejada por meio de diálogos rápidos no intervalo entre um grande evento e outro, é curioso que o roteiro alcance uma reflexão sobre responsabilidades e consequências (inclusive de ordem afetiva). É por essa via que Efeito Fallout finalmente atinge a maturidade que o enredo de ‘Nação secreta’ buscava. Não à toa a figura do protagonista está moralmente vulnerável. O ícone sai do pedestal e se situa numa zona indeterminada de valores instáveis onde a indisciplina é reconhecida como uma consequência interligada à reflexão ponderada sobre ação e reação. Enquanto a mente entra em crise, o físico permanece inabalável, superando o do próprio ator em resistência física. É curioso como Tom Cruise estabelece através de si mesmo o apelo midiático necessário para competir economicamente com as adaptações mitológicas da Marvel/DC (afinal, nelas o intérprete é produto cambiável… pouco importa quem fará o novo Homem-Aranha ou Batman desde que a fábrica de filmes não pare). Por conseguinte, escalar Henry Cavill (na época, o Superman) para interpretar o seu rival não foi uma opção aleatória. Cruise quer demonstrar uma capacidade de lutar de igual-pra-igual.
A fotografia de Rob Hardy é provavelmente a mais interessante da franquia. Um exemplo disso é a cena em que Ethan Hunt precisa optar entre o resgate do plutônio e a segurança de seu parceiro de trabalho mais antigo: a forma como os flares são utilizados para recortar o enquadramento dão à tais aberrações ópticas uma qualidade expressiva, capaz de sublinhar a intenção dramática do momento.
Mission: Impossible – Dead Reckoning Part One (2023)
de Christopher McQuarrie
O retorno do primeiro antagonista da franquia, o diretor da IMF Eugene Kittridge (vivido por Henry Czerny), não é o único aceno dado ao passado no Missão: Impossível de 2023. A 1ª parte deste Acerto de Contas também remete à atmosfera da encenação ilusionista aclimatadora do longa de 1996. A diferença é a maneira como os diretores operam o maquinário: em Brian de Palma, o ato de ludibriar assume o prazer pelo artifício, já Christopher McQuarrie busca manipular as evidências de maneira tão premeditada que se deixa contaminar pela farsa.
É por isso que aqui o regime psicossensorial é movido não por uma economia libidinal voyeurista, mas pela compulsão dopaminérgica: o filme vibra uma forte ansiedade no intuito de cobrir todos os eventos concomitantes através de paralelismos frenéticos, refletindo a onisciência obsessiva do Inimigo imaterializado que tudo vê - o experimento em Inteligência Artificial vagamente denominado como A Entidade. Essa arquitetura instável proporciona um enfileiramento de choques num ritmo galopante, de fluidez irregular.
A decupagem marcada por uma insistente quebra no eixo dos 180° e pela inclinação recorrente do ângulo holandês parece propositalmente nos desviar a atenção em relação às constantes viradas rocambolescas de um plot que, apesar de absolutamente arbitrário, possui uma ideia bem simples. Afinal de contas, tudo se resume ao clássico motif hitchcockiano do suspense em torno de um objeto-fetiche: a posse de um determinado par de chaves que possibilita o controle d’A Entidade. Só resta então a evidência daquilo que é realmente mais caro a McQuarrie: a sensorialidade siderante dos grandes eventos de ação. Durante a sequência de interceptação no aeroporto percebe-se que as arbitrariedades elípticas dessa dinâmica tornam a leitura cansativa e quase sobem à cabeça de McQuarrie. Ao dar as costas para a trama, é como se a narrativa se chocasse com o propósito do filme; afinal, é suposto uma intriga complexa e sólida o bastante para se distender em duas (longas) partes envolvendo diversos personagens. Método esse que, ao mesmo tempo, se mostra auto-indulgente em sua proposta hedonista. Volta-e-meia o melhor amigo do protagonista (o hacker Luther, interpretado por Ving Rhames) rapidamente intervém apenas com o intuito de explicar ou até mesmo reiterar o desenvolvimento do enredo.
O que Acerto de Contas promove com eficiência é uma atmosfera ilusionista, semi-fantasmagórica, recorrendo não só ao apelo do disfarce mas à uma estética impregnada pelo etéreo (a fumaça e a poeira) e uma encenação caracterizada pelo vácuo. A figura de Ethan Hunt não imerge numa zona espectral similar a de ‘Protocolo Fantasma’, antes se situa conforme uma perspectiva que assume as possibilidades fantásticas do cinema, uma visão cuja convicção se localiza no apelo da mostração e na motivação espetacular que reside na improbabilidade dos eventos de aventura. O agente secreto - quase um super-herói -, deixa de ser absoluto. Suas habilidades e sagacidade são transmissíveis a outros personagens, assim como seus reflexos instintivos requerem maior ponderação.
Sob esse aspecto, esta 1ª parte detém um tom menos sisudo do que ‘Efeito Fallout’, inclusive na organização das sequências de ação. Assume-se aqui uma lógica de modulação caótica a la Mack Sennett, ancorada nas possibilidades fortuitas da plasticidade cinética tanto dos corpos quanto espaciais (principalmente durante a perseguição pelas ruas de Roma). A sequência final no trem expresso é tão material quanto implausível, ainda que de uma grandiloquência entorpecente: soa como se o clímax monumental de ‘A General’, de Buster Keaton, fosse organizado conforme o apelo imersivo típico das catástrofes de James Cameron. O problema é que o desprezo pelo enredo é algo que nunca acometeu a esses artesãos do cinema de atrações. Daí, o exercício hiperbolizado de McQuarrie, que tanto deseja dialogar com o primitivo (do cinema, da franquia, do protagonista) para lidar com um perigo contemporâneo, perigosamente se aproxima dos produtos embusteiros de Guy Ritchie (por exemplo). E se o excesso de Acerto de Contas é, em estrutura, o oposto da unidade metódica de ‘Efeito Fallout’, só resta a curiosidade pela forma como Cruise, McQuarrie e cia. irão finalmente encarar de frente a ameaça temida e onipresente da Inteligência Artificial sem contornar o peso da responsabilidade global que a 1ª parte reiteradamente avoca e adia.
Afinal, a 2ª metade será a derradeira… Mesmo?
Mission: Impossible – The Final Reckoning (2025)
de Christopher McQuarrie
A emergência da ação do tempo não consta apenas no título do último (?) 'Missão: Impossível', assim como a finitude não é o único aspecto dessa temática sobre a qual o filme de McQuarrie & Cruise se debruça. No registro das imagens, o tempo é inerente ao movimento dos corpos e à ação que promove a fuga ou a aproximação entre eles. O tempo é um dos aspectos sensoriais do cinema: duração, memória, cronologia, sincronia ou assincronia, esgotamento de prazos (em algum momento o enredo há de terminar, ainda que demore dois filmes ou 333 minutos para tal, como no caso dos capítulos ‘Reckoning’), etc. Do simulacro de imagens anteriores - que retornam sob a indumentária do flashback compartilhado entre o protagonista e nós - à fobia de um futuro dominado pela desumanização tecnológica, efeito colateral da praticidade proporcionada pela inteligência artificial (reflexo dos tempos: não se trata apenas do plot do filme, claro, mas também da autoconsciência do cinema industrial e da realidade do além-tela, cada vez mais automatizada), O Acerto Final rompe com a linearidade estrita e a aspiração ao verídico para relacionar o encadeamento sensório-motor de uma maneira menos previsível. Implicado em memórias e prognósticos, o instante luta para satisfazer unicamente por sua própria flutuação. Ethan Hunt está sempre correndo, numa necessidade infindável de comprovar a sua eficiência nessa realidade onde é cada vez mais difícil discernir a verdade dentre tantas aparências críveis. Um mundo no qual, por ironia cruel, as consequências estão mais céleres do que o nosso herói-espião. Ainda que algo se salve, outro é perdido. Ao longo do filme, a excitação jamais se desvincula da urgência, seja pela falta de ar ou pelo peso incontornável de sua gravidade: prazos-limite para salvar o mundo, sub-prazos para resgatar alguém, sub-sub-prazos para garantir a própria sobrevivência; promover reencontros para acertar desavenças de outrora e, ao mesmo tempo, prever possíveis reveses; recorrer à montagem alternada para estabelecer sincronias dramáticas e antagonismos plásticos entre sequências. Tudo isso sob a onipresença d’A Entidade, grande vilã da história, aniquiladora de corpos e mentes. A maneira de burlar o controle panóptico é retornar aos mecanismos rudimentares pré-virtualização, garante Ethan Hunt. Obediente, o frenesi de O Acerto Final respira e recorre ao método de drama-de-aventura outrora desempenhado com nostalgia por 'Top Gun: Maverick', o qual as bilheterias e Hollywood receberam de (muito) bom grado (ao contrário do ocorrido com 'Reckoning I'). Aposta-se então no lance metafísico: um giro de 180° da câmera após a espetacular sequência submersiva no Oceano Pacífico e estamos no que poderá ser um céu de brigadeiro. A resolução do embate final, por sua vez, dá-se numa altitude quase inumana. É impossível detectar o que é verdade, importante relembrar - afinal, esta é uma das primeiras frases na introdução dada pela/sobre a inteligência artificial maligna. A ação em si contorna a potência do falso... não há o que se questionar sobre a cinética dos corpos em setpieces concentrados, onde a ação do tempo é sempre o maior percalço. Se, por um lado, a ansiedade mental pressuriza a iminência dos atos, por outro, as sub-missões que constituem aquela impossível só atingem o seu êxito graças ao esforço físico hercúleo. É nesses grandes eventos onde O Acerto Final alcança suas potencialidades, não nas inúteis complexificações a nível ontológico, social e político acerca da discussão computacional, que só geram uma exposição didática de tom acelerado e superficial. A promessa de ser o último filme da franquia sem jamais sê-lo de verdade (conhecemos as artimanhas de Hollywood) leva à emergência de amarrar pontas estabelecidas há quase trinta anos. No fundo, a dupla McQuarrie & Cruise crê que o prazer da visão se localiza no instante da imagem-movimento, não no que levou até ali, nem nos posicionamentos finais exigidos pela conclusão. É o que restará na memória de todos os oito longas da série, e é o que proporciona, afinal, a pacificação entre a virtualidade e a matéria. Todo o discurso, da maneira como é aqui promovido, é puro blefe, é apenas uma perda… de tempo.
Baita texto, Rafa!
E acho ótimo adorar uma opinião ao mesmo tempo em que discordo dela: pra mim Rogue Nation só perde pro original do De Palma hahahahah
Ps: ótimo comentário sobre o McQuarrie querer retornar a um cinema primitivo enquanto o vilão é a tecnologia mais atual! Aliás, se na parte 1 ele retornava ao A General, do Keaton, na parte 2 ele vai até se encontrar com o inuítes como se fosse o Flaherty em Nanook, o Esquimó.