Cinediário (XIV)
La bête dans la jungle + La bête + Deadpool & Wolverine + Firebrand + Como Vender a Lua
“A imagem não sugere, não evoca: ela é, com uma força de presença que o texto escrito nunca tem, mas com uma presença que exclui tudo que não seja ela.” (Julien Gracq1)
Ao longo deste ano estão circulando mundialmente duas recentes produções francesas livremente inspiradas em “The Beast in the Jungle” (1903), novela de Henry James. Os longas lidam de formas distintas - e um tanto singulares - perante as complexidades misteriosas dessa história circunscrita à relação entre um homem e uma mulher. Com obstinada expectativa, o casal passa a vida esperando que uma promessa extraordinária se concretize (a tal “fera” do título, atenta, pronta para emboscá-los a qualquer momento). De fato, nada acontece. O principal é que, enquanto envelhecem, os sentimentos à tona mobilizam um autêntico confronto emocional.
A profundidade estilística da prosa de James encontra uma narração lírica e enxuta no filme de Patric Chiha, La Bête dans la jungle. Apesar de manter boa parte dos diálogos literários, o universo material é mais restrito e a exposição, ambígua, concentrando-se nas possibilidades do espaço-tempo. A duração vivenciada da intimidade atravessa as condições da cronologia histórica. O resultado fílmico dá maior evidência à ambição evocadora do texto, como se a ameaça desconhecida não pudesse brotar de outro lugar senão o próprio interior da cena. Já La Bête, de Bertrand Bonello, atribui uma dimensão virtuosística à herança romanesca. Sua representação se apropria das alegorias ficcionais como um meio de exploração do mundo contemporâneo. O tempo-espaço é o ponto fulcral, perpetrando encadeamentos e digressões temporais a partir da interação entre os personagens. Enquanto a “fera” ronda os limites da imagem, a psicologia dramática converge no rosto de Léa Seydoux.
Difícil apontar o que motiva a presente atenção para esta novela centenária. Apesar da mera coincidência e do inegável valor intemporal e flexível da obra de seu autor, há nos longos fraseados de “The Beast in the Jungle” uma sensação latente de ansiedade pelo fantástico que culmina na distração do presente. Considerando que esse sintoma é rotulado como o “mal do século” em que vivemos, eis uma possível justificativa moral para a identificação com a essência da história. Ou poderia-se pensar também em reflexos pós-pandêmicos de relações contraídas pelo confinamento, ou ainda o clichê da alienação narcísica na Geração Z… enfim.
Abaixo, impressões isoladas sobre ambas as adaptações:
La Bête dans la jungle/ The Beast in the Jungle
de Patric Chiha (França/ Bélgica/ Austria)
O fluxo lírico desta fábula electronica proporciona aquela sensação de abstração temporal tão característica das boates, instituindo um devir onde a expectativa e a reincidência não cedem à distração (nem da nostalgia, nem do suspense). Isso permite o estabelecimento do presente através de sua própria transformação - a qual, por sua vez, se desenvolve mediante uma estrutura de analogias que caracterizam plasticamente as distintas atmosferas sócio-culturais entre 1979 e 2004. Os registros tornam-se então imagens do tempo.
Apesar da transposição de época, Chiha não necessariamente moderniza a premissa de Henry James, optando por concentrar-se na pertinência atemporal do texto-base. O amor, em sua forma mais pura, propõe uma cumplicidade silenciosa capaz de manter-se inabalável às oscilações do destino. Mas é justamente o aspecto translúcido que pode torná-lo difícil de ser reconhecido como tal. Daí a importância sensível da fotografia de Céline Bozon ao caracterizar o progressivo envolvimento dos personagens vividos por Anaïs Demoustier e Tom Mercier.
La Bête/ The Beast
de Bertrand Bonello (França/ Canadá)
No percurso de La Bête as variações temporais reiteram um modelo de relacionamento onde a figura feminina é tida como o lócus sentimental, subjugada pela frieza do olhar masculino. Uma vez que o controle inviabiliza as tentativas de autonomia emocional, as relações se veem fadadas à ruína.
A neutralização dos afetos por meio dos dispositivos se revela o real motivo distópico no sci-fi de Bonello. A imagem em si é assumida materialmente como um sintoma desse risco humano. Seguindo uma disposição lynchiana, o diretor a personaliza conforme a variedade de percepções. Mas a articulação dos reencadeamentos temporais, onde o trágico se vincula irremediavelmente ao romântico, dialoga com uma estrutura poética típica de Alain Resnais. Este é (caso raro nos últimos tempos) um filme onde as múltiplas possibilidades da representação servem a um sentido inequívoco, ao invés de reproduzir um discurso de forma tácita.
Perante o corpo e o rosto de Léa Seydoux, o olhar de Bonello sabiamente se distingue dos demais personagens que cruzam sua trajetória - ao contrário, por exemplo, da atitude de um Yorgos Lanthimos em ‘Poor Things’. A frieza do enquadramento caracteriza presente, passado e futuro (e as constantes vozes masculinas fora do quadro parecem atuar em prol dessa garantia), mas é a partir da atriz que se manifestam no frame as reações derivadas do amor e do medo. Essa exposição do primitivo resulta da mecânica retroativa entre o controle automatizado e a dinamização das emoções, atribuindo uma identidade autônoma a cada atmosfera da trama.
La Bête busca zelar por aquilo que caracteriza a subjetividade humana, recusando as ofertas de obliteração. Ao associar as convenções de gênero à nitidez de uma mise-en-scène vigilante, o resultado é o apreço pelo elemento vivo que habita as composições microplanejadas. A representação não carece de um direcionamento realista para se aproximar do mundo real e é sob o regime de recomposição das aparências que uma impressão de contemporaneidade adere à epiderme imagética. Por isso, o grito de Seydoux não é suplantado pelo QR code, mas antes confronta sua virtualidade.
Outros lançamentos da segunda quinzena de julho:
Fly Me to the Moon/ Como Vender a Lua
de Greg Berlanti (EUA)
EUA, meados dos anos 1960. A disciplina técnica e a ornamentação perfeita das aparências, unidas em prol da divulgação ideológica do americanismo. Estamos falando da máquina hollywoodiana ou da corrida espacial contra a URSS? Os dois.
Atento às regras funcionais de uma comédia romântica clássica - o roteiro busca a agilidade comunicativa hawksiana, mas a direção mira em Billy Wilder ao apostar nas possibilidades do encanto em meio ao cotidiano -, Como Vender a Lua sabe operacionalizar o arranjo entre a ciência (Channing Tatum) e a publicidade (Scarlett Johansson) em prol da representação. O apelo plástico da nostalgia ornamenta uma unidade de encenação bem produtiva, pautada pela eficácia das ações diante do reconhecimento objetivo dos cenários. Tal lógica até renderia mais se fosse beneficiada com a já comprovada química entre Johansson e Chris Evans, ator inicialmente escalado para o projeto. A desenvoltura elegante da atriz sofre com o marasmo dramático de Tatum.
Neste universo ficcional, o êxito da Apollo 11 permanece historicamente garantido e as intenções do feito são, de imediato, assumidas como essencialmente políticas. O mistério paira sobre o valor das imagens divulgadas ao mundo como índice do real. Na maior parte do tempo, Como Vender a Lua se concentra naquilo que remete a si mesmo enquanto objeto cinematográfico: as capacidades do artifício em mimetizar a realidade ao ponto da autenticidade dos eventos perder relevância, uma vez que os efeitos ilusionistas da representação cumprem seu papel junto à audiência. Ou seja, a boa e velha transparência do cinema (clássico narrativo de Hollywood) em funcionamento.
Entretanto, diante da chegada do homem à Lua, a trama não se sacia com a sugestão dos efeitos causados pelas aparências e quer pôr os pés no chão. Uma inútil tomada de posicionamento, retrógrada em sua conveniência capitalista? Será que sustentar a dúvida por meio do diálogo entre os conceitos, como a direção de Greg Berlanti diligentemente articula, não seria o bastante? Talvez. O fato é que nos últimos 15 minutos Como Vender a Lua reforça o seu aspecto representacional hollywoodiano. Contudo, não mais aquele da sedução vintage. Trata-se agora dos milagres ficcionais onde os pecados se redimem com facilidade, os obstáculos são superados por um triz e todos os clichês impõem a sua presença, até mesmo aquele mais insuportável: a canção ‘Fly Me To The Moon’, interpretada por um Woody Harrelson emulando Sinatra.
A câmera se despede em um movimento de grua infinito, partindo da dupla Johansson-Tatum perfeitamente emoldurada pelas portas do galpão do estúdio (ops, da NASA), indo além das nuvens. Eis a doce ilusão da farsa, entregue de bandeja ao público que nada mais esperava além de um entretenimento aprazível. Apesar dos propósitos da trama, a narrativa de Berlanti é menos naive do que se supõe…
Firebrand
de Karim Aïnouz (UK)
O vigor passional que caracteriza a materialidade dos corpos nos filmes brasileiros de Karim Aïnouz, induzindo-os à mobilidade dramática, aqui se ressente com a frigidez monárquica do ambiente inglês. A solução do diretor é o close-up, como quem se aproxima das feições no intuito de capturar resquícios de uma vibração anímica. Mas Alicia Vikander é apática e necessita do entorno da cena para significar a retidão de sua Katherine Parr. Já Jude Law se beneficia da deterioração psíquica de Henrique VIII e é astuto o bastante para constantemente aproximar as mãos do rosto, meio de potencializar sua performance. Ainda assim, a concentração do ator está nas rugas, enrijecendo o esforço interpretativo.
Esse mecanismo estabelece uma unidade demasiado plana, tornando a narrativa enfadonha. Até porque a religião atravessa a existência dos personagens mas a sua representação se distancia de qualquer possibilidade metafísica, atendo-se aos dogmas e ritos. Ou seja, não atribui ao próprio filme o peso da gravidade que as doutrinas adquirem na trama.
Além disso, o regime de close-up’s ocasiona um curto-circuito que implode três momentos de grande importância dramatúrgica: o primeiro encontro diegético entre Vikander e Law (onde a profundidade de campo e o próprio enquadramento titubeiam); o aborto (a edição fragmenta a catarse) e a vestimenta da derradeira indumentária (a decupagem esvazia o páthos do ritual). A estratégia de Aïnouz só se comprova eficaz, mesmo que vacilante, no conclusivo embate íntimo entre os dois atores principais. É o único momento em que a opção pela janela anamórfica é narrativamente justificada, viabilizando os jogos de poder.
Firebrand propõe um olhar revisionista sobre a História mas, afinal de contas, qual o sentido de reinventá-la se seus agentes não adquirem uma outra dimensão, ou ainda, o mínimo de ambiguidade?
Deadpool & Wolverine
de Shawn Levy (EUA)
Na primeira meia hora até dava pra apostar que a extrema autoconsciência e a disposição para confrontar pólos opostos do próprio universo cinematográfico seriam indícios de uma superação da Marvel perante o atual desgaste do gênero.
O aspecto reflexivo, contudo, jamais ultrapassa o estado da perplexidade, da piscadela para a audiência. O intuito de Deadpool & Wolverine ao interpelar a câmera é menos propor um diálogo estrutural do que comunicar seu mea culpa publicitário. Essas imagens fingem nos olhar de volta mas, no fundo, miram o passado a fim de garantir-lhe a glória, possibilitando assim um prolongamento para si mesmas. Com isso, afastam as possibilidades renovadoras e ratificam seu desgaste. Já o exercício mitológico de emparelhar os extremos falha em superar a autocondescendência. Destituídos de uma transformação substancial, os heróis de Ryan Reynolds e Hugh Jackman se sujeitam apenas à troca de aparências.
O fato é que o filme se resume ao seu traço mais recorrente: uma suposta transgressão à nível temático, muito descrita e pouco representada. Esse falso funcionalismo só poderia resultar na permanência do estado das coisas. Ou seja, a auto-reflexão da Marvel se utiliza do mesmo molde que contesta, mantendo incólume as regras de sua linha de produção. As capacidades regenerativas da “oração” de Madonna acabam por confirmar que o “Bye Bye Bye” prometido na abertura foi alarme falso.
À essa altura, é inútil recorrer a malabarismos ficcionais para nos iludir de que esses artefatos são elaborados sobretudo para atender às necessidades do grande público ao invés de outros intere$$e$. “Fórmula” não é sinônimo de “fundamento”. Difícil crer que o próprio Deadpool seja tão ingênuo ao ponto de cair nessa falácia moral.
GRACQ, Julien. “Lettrines II - OEuvres complètes”, Paris, Gallimard, apud MITERRAND, Henri. “Do romance ao filme”. Rio de Janeiro, Best Seller.