Cinediário (XVI)
Motel Destino + Kinds of Kindness + Pisque Duas Vezes + O Corvo + Alien: Romulus
“Toda obra criativa — filme, pintura, romance, poesia, música, arquitetura — é uma estrutura formal com convenções a serem seguidas ou rompidas, com estruturas e uma história que a imaginação individual deve aceitar ou trabalhar contra. Conteúdo ou sentido é criado por meio dessa luta com ou contra a forma. A palavra certa, a imagem perfeitamente enquadrada, o lugar exato para quebrar uma linha em um poema, ou fazer uma composição ou um corte em um filme, determina como o leitor ou espectador responderá e compreenderá — ou será deixado em um estado de incompreensão.” (Robert Kolker1)
Lançamentos vistos na segunda quinzena de agosto:
Motel Destino
de Karim Aïnouz (Brasil/França/Alemanha)
Uma espécie de neo-noir kitsch onde os traços do gênero ressurgem sob o viés mais básico e a textura das imagens convida para um transe estroboscópico. Esse efeito sensorial duplica na plasticidade do registro um apelo óptico de curiosidade voyeurística já instaurado na própria diegese.
Como espaço, o motel do título adquire um aspecto paradoxal de proteção e cerceamento, lócus do tensionamento primitivo entre o medo e o desejo. Tal correlação faz deste ambiente o cenário propício para um encontro incontornável do protagonista Heraldo com seus traumas ancestrais. Em meio aos lances reveladores das obsessões, Motel Destino vislumbra a migração como algo possível somente mediante o extermínio daquilo que corrompe as origens, interrompendo assim o ciclo de cicatrizes condicionantes no momento presente.
As neuroses vêm à tona por meio da estética, onde uma recorrência de cores, alucinações e ícones multiplicam as substituições e os deslocamentos. O roteiro, contudo, parece não confiar plenamente nas potencialidades expressivas deste jogo de simbolismos. É como se a superfície interessasse mais a Ainouz do que o exercício formal dessas forças que visam o desvelamento da aflição latente; instintos cuja ressonância, ao mobilizar o desenvolvimento dramático, perturbam os alicerces da representação.
Quando os artifícios se dissipam e a evocação mitológica se faz evidente (a expulsão do paraíso), a trama ressalta a fragilidade do esquema estabelecido. A auto-imposta necessidade de esclarecer os pormenores das consequências individuais e dos movimentos em conjunto acaba por provocar uma instabilidade no imaginário que caracteriza o movimento interiorizado de Motel Destino. Por mais que as imagens vistosas estimulem a visão, o sentido resultante é naturalmente incapaz de satisfazer as lacunas. Talvez se Ainouz assumisse isso, o longa pudesse explorar verdadeiramente suas potencialidades mais interessantes e mergulhar na profundidade que tateia.
Kinds of Kindness/ Tipos de Gentileza
de Yorgos Lanthimos (EUA/ Reino Unido/ Irlanda)
O suposto niilismo de Kinds of Kindness busca evidenciar como as esferas sociais do trabalho, do matrimônio e da religião instituem uma mecânica de abuso de poder onde a disponibilidade e a demanda são vilipendiadas por uma natureza egoística. O resultado desse sistema de aprovação mútua leva à obliteração daquele que se entrega às exigências da figura de autoridade em cada âmbito.
A trajetória de ressurreição do personagem R.M.F. (ocasional vítima em comum do ciclo obsessivo de vaidades presente em cada episódio) indica como as pretensões formais de Lanthimos estão cada vez mais cínicas. Da mesma forma que a psicologia das relações é constantemente submetida à influência do poder - os atores intercalam o papel do subjugado em cada episódio: Jesse Plemons, Emma Stone e Margaret Qualley, respectivamente - as performances são pressurizadas pela esterilidade da liturgia observacional do diretor. A estratégia de identificação jamais desapega desse distanciamento do olhar que assume uma soberania irrefutável, alicerçada na ausência de contrariedade.
O caos, quando se faz presente, finge desestabilizar a ordem pré-estabelecida. Seu aspecto, contudo, jamais assume uma energia libertadora. A estranheza se cristaliza na forma de um objeto cuja intenção é apenas o estímulo controlado do desconforto, oferecendo a si próprio à disposição voyeurista. O diabo mora nos planos-detalhes de Lanthimos: os apontamentos reduzem o absurdo ao ridículo em sobressaltos pautados por uma falsa ironia, de efeitos e incidências incapazes de estabelecer algo além do choque imediato.
Ao invés de instituir um questionamento ácido das regras moralizantes, o ceticismo de Kinds of Kindness se detém na especulação perversa diante da falência das noções tradicionais. Como ressalta o tema de abertura do Eurythmics, “some of them want to use you”…
Blink Twice/ Pisque Duas Vezes
de Zoë Kravitz (EUA)
É curioso o fato da rede Kinoplex veicular em meio aos trailers o comercial de uma determinada rede social, protagonizado por artistas já experientes, dotados de uma certa credibilidade cultural. Não só porque o lembrete desse aplicativo, imediatamente anterior ao início do filme, já cutuca a dopamina no momento em que o público deveria estar mais preocupado em se dedicar a um exercício de concentração mental. Indiretamente, o convite ao engajamento virtual baseado no registro contínuo do cotidiano dialoga com o eixo central de Pisque Duas Vezes.
Por mais que a trama se concentre no tipo de mistério alucinatório onde a solução para a sobrevivência está em assumir a posse de sua própria narrativa como indivíduo, a estrutura fílmica proposta por Zoe Kravitz eleva o esquema de deduções e induções do roteiro a um exercício visual. Nele, a missão da protagonista vivida por Naomi Ackie é conseguir distinguir a si mesma em meio ao fluxo de experiências idealizadas que, pouco a pouco, confunde o assustadoramente engraçado com o letalmente sério. O problema não está no registro imagético propriamente - seja no feed dos reels ou nos arquivos de polaroids (tão perecível quanto o virtual) -, mas na vivência que recusa as memórias e deixa se embriagar pela velocidade rotineira.
Ainda que, como em boa parte das produções contemporâneas, o hedonismo esteja irremediavelmente parametrizado às noções de culpa e reparação (regulando as capacidades de discernimento moral do espectador), a articulação formal de Kravitz propõe uma estratégia bem delineada através da variação rítmica no encadeamento dos planos, do uso da profundidade de campo e das possibilidades de identificação e reflexividade contidas na relação especular entre a tela e a câmera cinematográficas. Antes de tudo, há o auto-reconhecimento diante da sedução promovida pelas estruturas morais automatizadas, rompendo com a espiral dos efeitos extáticos para recuperar a percepção. Só então é possível apontar um plano de fuga para a luz do esclarecimento, redirecionando o olhar conforme as funções de cada personagem abandonam a idealização e se tornam mais nítidas. Ao remodelar o reconhecimento da topografia narrativa, a ressaca formal expõe o poder agressivo nas dinâmicas de abuso.
Pisque Duas Vezes assume a árdua tarefa de despertar a sensibilidade do espectador e fazer com que não só a composição de suas imagens perdurem após a projeção mas principalmente os efeitos que a justaposição entre elas provocam. Propósito difícil, uma vez que a grande maioria já se levanta quando as luzes da sala se acendem ao primeiro nome dos créditos finais, com o celular em punho, dispostos a recuperar os estímulos perdidos naquelas duas horas de imersão.
Fosse um projeto ainda mais confiante na própria proposta, talvez conseguisse Armie Hammer no lugar de Channing Tatum. Mas as redes sociais não estão prontas para ter essa conversa.
The Crow/ O Corvo
de Rupert Sanders (EUA)
Mesmo que recorra aos extremos da representação (seja através da violência gráfica ou até mesmo da ópera - quer dizer, de sua apropriação referencial, não dos mecanismos operísticos), O Corvo tem o desenvolvimento muito dependente do texto e o ritmo subordinado à trilha musical. Tratando-se de uma história de tintas ultrarromânticas, a incapacidade de estabelecer uma narrativa propriamente fílmica resulta no esmorecimento dramático de sua atmosfera sobrenatural. Engano esse que nem o invólucro gótico-de-boutique da adaptação de 1994, estrelada por Brandon Lee, cometia. No caso de um filme tão literário assim, o pior de tudo é prometer Rimbaud e deixar o público a ver navios… Aqui está a reparação, via Antonio Cícero.
Alien: Romulus
de Fede Álvarez (EUA)
Romper ou não com a tradição, eis a questão.
Romulus está o tempo todo em crise perante o universo “Alien”, questionando como assumi-lo sem se tornar refém da mitologia, tateando maneiras de zelar pela natureza das convenções mesmo propondo um desdobramento delas.
No confronto com a imagem original fica evidente a busca pela essência. Afinal, é para onde se deslocam as motivações e a tensão do perigo, destituindo a exclusividade do xenomorfo como figura catalisadora do medo. A urgência passa a se situar nos sucessivos cruzamentos liminares (da colônia espacial para um planeta; do transportador-pirata para a nave Renaissance e vice-versa; dos dados contidos na memória do andróide Rook para o armazenamento de Andy - do filme seminal de 1979 para o de 2024, enfim) enquanto os elementos mais básicos concentram os riscos (a gravidade; a luz solar; a constituição corrosiva dos alienígenas - a representação fiel à plástica retrô-futurista de Ridley Scott). Neste movimento, curiosamente, Fede Álvarez se aproxima mais do pragmatismo narrativo e da intensidade dinâmica de Walter Hill (produtor da franquia) do que dos outros diretores já responsáveis por “Alien”.
Há momentos onde o roteiro de Álvarez e Rodo Sayagues é capaz de renovar as proposições de “O 8º Passageiro” sem adulterar a atmosfera claustrofóbica e o regime simbólico, um feito considerável. Mas nem por isso Romulus resiste ao apelo iconográfico (reverenciando a trilogia inicial) e à tentação de impor uma assinatura própria. É quando o projeto de diálogo com as origens revela suas fragilidades. Independente de negar ou afirmar a matriz, a impressão é de um susto desconexo, o oposto do desenvolvimento de um resultado - e aqui cabe toda a progressão dramática calcada no afeto e o body horror da conclusão. A preocupação está, no fundo, mais detida nas imagens do que na sua engrenagem.
Ainda assim, Romulus propõe algo inédito na franquia: uma relação de contiguidade antes do rompimento antagônico, inclusive se reconhecermos o retorno de Scott em 2012 e 2017 como nada além de uma mal-ajambrada megalomania do mito.
KOLKER, Robert. The Form, Structure, and Influence of ‘Psycho’. Alfred Hitchcock’s Psycho. Oxford University Press, 2004.