Cinediário (XVII)
Longlegs + Beetlejuice Beetlejuice + Speak no evil + The breaking ice + The instigators
“Mais do que qualquer outro meio de comunicação humana, a imagem em movimento se manifesta sensorial e sensivelmente como a expressão da experiência pela experiência. (…) Projetada objetivamente, expressada visivelmente e audivelmente diante de nós, a atividade do filme de ver, ouvir e se mover é capaz de significar em uma linguagem penetrante, primária e incorporada que precede e fornece as bases para as significações secundárias de uma comunicação mais discreta, sistemática e menos "selvagem".
O cinema transpõe, portanto, sem transformar completamente, aqueles modos de estar vivo e conscientemente incorporado no mundo, que contam para cada um de nós como experiência direta: como experiência "centrada" naquela existência particular, situada e unicamente ocupada, sentida primeiro como “Aqui, onde o mundo toca" e depois como
"Aqui, onde o mundo é sensível; aqui, onde eu estou”.
(Vivian Sobchack1)
Lançamentos (re)vistos na 1ª quinzena de setembro:
Longlegs/ Vínculo Mortal
de Osgood Perkins (EUA)
Intencionalmente ou não, Oz Perkins embaralha as duas noções nas quais, a partir da protagonista, Longlegs se centraliza: a assimilação de sua percepção na forma fílmica se cruza com a construção psicológica daquilo que compõe a visão de mundo dela, partindo da diegese. Não se trata, contudo, de um caso onde a estrutura viabiliza uma sintonia entre subjetividade e intelecto, como em "O Silêncio dos Inocentes" (a referência mais óbvia). O apreço de Perkins pela superfície das composições cênicas acaba por estabelecer um filtro sobre a perspectiva da personagem, distanciando-a. De certa maneira, isso serve para acentuar os sintomas de uma formação familiar corrompida, mas também facilita a imposição dos sustos (no fundo, menos ligados ao design de som do que à montagem).
Para uma narrativa investigativa que almeja se posicionar em uma sensação bastante peculiar - o estranhamento localizado entre a memória do trauma e a sensação premonitória - essa falsa imersão é um problema. Tanto que a estratégia se desmonta a cada ausência de Maikai Monroe, tornando o filme inerte. Sim, a conexão longínqua entre a detetive e o serial killer (Nicolas Cage) é notável desde o prólogo (as rimas entre os movimentos de zoom; a evolução da cor vermelha de objeto plástico para símbolo; a alternância do formato do frame e do tipo de registro demarcando não só passado e presente mas propondo uma duração entre tais períodos). As dificuldades vêm à tona quando a narrativa finalmente precisa promover o reencontro entre os pólos, instituindo um ritmo.
Nem o suspense, nem a presença do unheimlich, nem as elipses típicas do mistério criminal são suscetíveis de reverberar internamente seus efeitos produzindo algum sentido realmente fílmico se as operações são incapazes de ultrapassar a textura da encenação para mobilizar as forças que (possivelmente) residem ali. A prova definitiva da falência de Longlegs em proporcionar algo substancial além da atmosfera estática de mal-estar é a necessidade contínua de recorrer ao texto para desenvolver seu mistério central. Ou ainda: a comodidade de Nic Cage em tornar o seu método particular de atuação em um artefato bizarro, um objeto estranho independente do meio, satisfazendo assim as demandas rasas de várias produções independentes atuais.
Bettlejuice Beetlejuice/ Os Fantasmas Ainda se Divertem
de Tim Burton (EUA)
Na entediante tendência contemporânea de idealizar a cultura pop do século XX, o diferencial de Tim Burton é a ironia, conduzindo o apelo nostálgico a um extremo reacionário.
O redirecionamento ao passado se faz presente em diversos níveis de Beetlejuice, Beetlejuice - no narrativo (o retorno dos personagens à Winter River; o confronto do personagem-título com sua primeira esposa), no prófilmico (replicando a estética do longa anterior com aperfeiçoamentos modernos) e no extrafílmico (não só os atores principais e o diretor retornando a um projeto de 36 anos atrás… pôr Jenna Ortega e Winona Ryder como mãe e filha é fazer a Wandinha da Netflix confrontar sua verdadeira referência original).
Se em “Beetlejuice” Tim Burton parecia mais preocupado em afirmar o seu estilo a partir das apropriações visuais surrealistas e expressionistas, aqui o cineasta já está bem mais à vontade. Mesmo assumindo as referências de maneira explícita, quase jocosa, isso não significa que o seu formato desapegou de uma certa operação publicitária naive, o tipo de plasticidade que privilegia os efeitos espetaculares momentâneos. A diferença reside na forma como o imediatismo conduz à uma espiral de nostalgia, cuja entropia ultrapassa os limites do filme original e assume um distanciamento perante o próprio universo.
O ritmo anterior era de videoclipe; agora o recorte da decupagem assume uma postura HQ. Sempre referencial, a estética de Burton se exime de uma responsabilidade ao nível poético tanto das imagens quanto das estruturas fílmicas. Entretanto, certos momentos de sua obra - onde o estranho não necessita se opor à artificialidade normativa, convivendo com ela através de um sistema de ameaças e dissimulações - são valorizados por essa frivolidade.
Eis então a recorrência à “MacArthur Park” na gravação original de Richard Harris, onde o apego à memória da letra se faz mais irônico graças à interpretação forçosamente melodramática. Ela é o centro do clímax narrativo, evento onde o páthos contraditório é capaz de resistir aos celulares da audiência, revertendo a compulsão pelo registro momentâneo numa prisão das vaidades. Este é só um dos vários exemplos onde os elementos característicos do tempo presente são reconhecidos sob um viés pejorativo e/ou enganador, justificando o refúgio no passado. Contudo, embora a proposta do filme seja uma imersão total no universo do longa seminal, o mecanismo de Burton reforça o quão as operações não podem ser repetidas exatamente (sendo emuladas de maneira pior ou melhor), como se o desgaste natural fosse incontornável. Neste traço, inclusive, Ryder e Michael Keaton se afirmam mais uma vez como os cúmplices ideais do diretor. O prolongamento oferecido por ambos a seus personagens substitui a antiga disponibilidade para o ilusionismo por um certo cansaço. Uma prostração que não resvala no ceticismo mas imprime as marcas do tempo de maneira dramática.
Quando a voz de Donna Summer traz de volta o “MacArthur Park” nos créditos finais, a sensação não é festiva, e sim de um rompimento agridoce com as idealizações de outrora. Após o retorno ao universo de 1988, o arco final de cada personagem está longe da plenitude - ou seja, eles se veem tão insatisfeitos como estavam no início (no presente), mesmo que transformados em suas trajetórias. Apesar dos arrepios e dos risos, o flashback não promove nenhuma mudança substancial em relação às crises. E é aí onde retorna, precisamente, a frivolidade de Burton. Beetlejuice Beetlejuice recusa o direito em voga à cena pós-créditos. Ainda bem.
Speak no evil/ Não fale o mal
de James Watkins (EUA)
Em tese, a sátira social de Speak no evil faria uma apologia à comunicação genuína no seio familiar. A adaptação da Blumhouse para o material de Christian Tafdrup, todavia, se revela mais atenta à crise da masculinidade patriarcal. O primitivismo de James McAvoy, paradoxalmente transgressor e retrógado em sua misantropia, causa uma atração peculiar no personagem de Scoot McNairy, pai passivo e marido apático.
Toda a construção do suspense psicológico que caracteriza a trama está alicerçada na incômoda mistura de curiosidade e repulsa difundida pela figura de McAvoy. Sua performance é parametrizada por um vigor sensível, típico da zona limítrofe da irracionalidade. É como se o ator detectasse o vão preciso entre as marcações da alegoria e uma energia própria, magnetizando a composição das imagens, transmitindo-lhes um caráter perversamente ambíguo.
Os percalços de Speak no evil se dão momento em que McAvoy deixa de ser um símbolo de adoração (alimentando as projeções de Scoot McNairy) para tornar-se o meio de revelação acerca das falências de seu arquétipo. É quando o próprio filme precisa reagir a isso através do desenvolvimento dramático. O que parecia um apreço pelas qualidades de McAvoy se assume mera letargia formal.
A direção anônima, impessoal, confortavelmente tragada pelo protagonista, torna o jogo entre a exposição dos fatos e a progressão narrativa um tanto uniforme. É evidente que, no momento das erupções destrutivas, o clímax mira em “Straw Dogs”. Mas ao contrário do filme de Sam Peckinpah, em Speak no evil a crueldade nunca se estabelece como uma manifestação selvagem do conflito moral onde os personagens se veem cativos.
Por isso, o discurso não vai além da intenção de reproduzir um comentário geracional, permanecendo alheio à qualquer possibilidade minimamente progressista. Não só perante as estruturas do material-base dinamarquês (a mudança de tom implica apenas numa representação mais gráfica), mas em relação a si mesmo, dispensando ou desconhecendo invenções formais para se apoiar no desempenho espantoso de seu astro.
燃冬/ The Breaking Ice/ A Fragilidade do Gelo
de Anthony Chen (China/ Singapura)
No impasse formativo do início da vida adulta (onde os resultados raramente se alinham às expectativas), o reconhecimento mútuo através do sentimento de inadequação permite ao afeto brotar naturalmente. Quanto mais espontânea a conexão, mais preciosos são os momentos vividos. São esses que, afinal, sustentam A Fragilidade do Gelo. O calor que aproxima os três corações (Zhou Dongyu, Liu Haoran e Qu Chuxiao) supera a fronteira dos corpos e extravasa para a atmosfera da imagem. Aqui, contudo, les amours não só só imaginaires (como no filme de Xavier Dolan), mas também palpáveis.
Há delicadeza porque tal experiência se dá partir do reconhecimento sensível da composição psicológica desses personagens. Primordialmente, a intimidade dos elos respeita os espaços individuais. Enquanto o álcool, os cigarros e o frisson da vida noturna sublimam a dureza cotidiana, as emoções retidas se condensam aos poucos nos reflexos corporais. Dissolve-se então a fina e persistente camada que reveste as aparências normativas, cuja rigidez atrofia a singularidade humana, para que o fluxo da vida possa se mover novamente.
The Instigators/ Os Provocadores
de Doug Liman (EUA)
Como alguém pode arcar com a responsabilidade moral quando se vê descrente do sistema da lei, cujos regulamentos beneficiam sobretudo os falsos heróis?
Essa é a perplexidade indutora da crise existencial vivida pelo protagonista de The Instigators (Matt Damon), homem pressionado pela dupla face do desespero - ora tentado pelas possibilidades anárquicas (via Casey Affleck), ora sobrecarregado pelos requisitos de idoneidade (Hong Chau). A comédia e a ação canalizam os extremos dessa exasperação reprimida na aparência pacata de Damon. É pela contenção que a sua fisionomia nunca perde um certo tom grave, referente à situação-limite onde o personagem se encontra.
Uma vez que o mundo, como espaço existencial, começa a perder o senso de adequação, somente as demais vidas nele presentes podem oferecer algum motivo sincero para a resiliência. Os Provocadores é um filme de corpos, os quais, em meio à imprevisibilidade, se auxiliam e se interditam, reconduzindo ou interrompendo os percursos um do outro a partir do reconhecimento de seus próprios valores como indivíduos.
O olhar de Liman até pode carecer de uma certa maturidade para dar conta das inflexões sociais sugeridas pelo roteiro, mas o apreço concedido à matéria é valorizado pela adequação de um ensemble cast funcional, dotado de uma sinergia afiada. É através dela que o verdadeiro senso de licitude desponta e as relações alcançam o valor abstrato da estima.
SOBCHACK, Vivian. Phenomenology and the Film Experience. The Address of the Eye: A Phenomenology of Film Experience. Princeton University Press, 1992.