Festival do Rio 2024 (2)
Desplechin, Andrea Arnold, Joshua Oppenheimer, Magnus von Horn; premiados em Sundance, Cannes, Berlim e Veneza; e mais...
Dando continuidade à cobertura iniciada no post anterior, trago impressões sobre outros títulos assistidos no Festival do Rio entre sábado (05) e segunda-feira (07). Mantendo a média de três filmes diários, meu status até o momento tem sido: pontual, desperto, atento e forte (rs).
Tudo Vai Ficar Bem (“Cong jin yihou”, Hong Kong), último longa do diretor Ray Yeung, foi o vencedor do Teddy Award deste ano. Trata-se de uma premiação do Festival de Berlim que há 37 anos reconhece os filmes de temática LGBT.
A partir de um comportamento observacional dos espaços, Yeung revela como as relações humanas ali estabelecidas e cultivadas os significam, tornando-os em ambientes. Tal perspectiva catalisa o sentido dramático da trama sem levá-la ao maniqueísmo, fornecendo uma sólida base psicológica para personagens que têm os seus elos postos à prova justamente por uma disputa de bens materiais.
As motivações sócio-econômicas e as necessidades emocionais da narrativa se equilibram por meio de detalhes cênicos, cujos prolongamentos viabilizam um movimento circular em cada sequência (e entre elas e o longa como um todo). A organicidade dramática opera pelas minúcias.
Essa compreensão sobre a especificidade de se construir um meio familiar - onde o valor da memória nem sempre garante a estabilidade dos sentimentos embora confirme a natureza deles - pode ser, a certo nível, ingênua, mas sua efetividade é genuína.
O primeiro projeto ficcional de Joshua Oppenheimer é um exercício hiperrealista perante o gênero musical. The End (Dinamarca/Alemanha/Irlanda/Itália/Reino Unido/Suécia) evidencia a artificialidade dos procedimentos operísticos para promover uma interpretação da materialidade cênica. É um movimento similar à linguagem reflexiva de seus polêmicos documentários sobre memórias de guerra, “The Act of Killing” e “The Look of Silence”.
Diante do colapso distópico das representações, a saída é tatear por reconstruções de narrativa (não só a nível individual, em cada personagem, mas para o próprio filme), de modo que o ceticismo formal jamais deixa escapar um certo comprometimento pela ficção como meio de subsistência.
Apesar da homogeneidade estética, essa busca encontra certas limitações inventivas, especialmente quando se submete aos esquemas superficiais do musical antes de subvertê-los. Não é exatamente a claustrofobia dos cenários-câmara o que pesa para o diretor, mas antes o aglomerado de formas e motivos pregressos. O elenco enérgico (Tilda Swinton, George Mackay, Michael Shannon, Moses Ingram), todavia, sempre disponibiliza possibilidades inspiradoras.
Faz sentido o diretor Arnaud Desplechin, no filme-ensaio Loucos Por Cinema (“Spectateurs!”, França), sacar o François Truffaut de “Os Incompreendidos” - ou seja, no papel de crítico cinematográfico que cruzou a fronteira e se tornou cineasta - para arrematar sua abordagem fenomenológica acerca da experiência cinematográfica. Menos pela poética em si daquele realizador, afinal, em comparação com os seus colegas de Cahiers du Cinéma, Truffaut não foi o anti-formalista da turma como muito se veicula por aí. A conexão referencial tem mais a ver com o próprio estilo de Desplechin (o viés autobiográfico; a preferência por um melodrama enxuto; o tom enérgico das narrativas anedóticas) uma vez que Loucos Por Cinema se assume como a mistura entre suas perspectivas como cinéfilo e cineasta. A fundamentação teórica, é claro, não escapa à subjetividade (pelo contrário, se apoia nisso). Ainda que vítima do próprio caráter redutivo das citações, há de se reconhecer uma certa coragem no seu ímpeto romântico, capaz até de louvar Georges Sadoul em pleno ápice da historização materialista do cinema. Noel Burch, o analista que trocou as propostas estruturalistas pela interpretação subjetiva do texto fílmico, vai curtir.
Conforme anunciado pelo próprio diretor Marco Calvani na apresentação, o Festival do Rio foi palco da estreia internacional de Maré Alta (“High Tide”, EUA). O primeiro longa do dramaturgo e ator italiano tem como protagonista Marco Pigossi (seu marido), na pele de Lourenço, imigrante brasileiro em temporada nos EUA cujo visto está prestes a expirar.
Partindo do conselho dado pelo personagem Maurice a Lourenço e, refletindo sobre a relação entre entorno e significado na narrativa de Maré Alta, os verdadeiros “tubarões” a cercar a “foca” seriam a inexorabilidade do tempo e a urgência das responsabilidades. É o que restringe a autonomia do personagem vivido por Pigossi, para além das suas condições e identidade.
Em boa parte do filme a alegoria se sobrepõe à metáfora: a fórmula prioriza os eventos em detrimento da humanidade dos personagens. Com isso, o olhar deixa de se aliar ao temperamento naive de Lourenço e passa a adquirir um reconhecimento superficial das circunstâncias onde o rapaz se insere (especialmente nos momentos onde o discurso quer se tornar mais incisivo). Certas cenas dão a impressão de que estabelecer um retrato é mais importante do que expressar sua condição, reduzindo o alcance sensível das experiências.
Queridinho do público no Festival de Sundance - e vencedor do prêmio de Melhor Atriz para Preeti Panigrahi - Sempre Garotas (“Girls Will Be Girls”, Índia/França/EUA/Noruega) segue a cartilha da grande vitrine da produção independente mundial que já tornou, por si só, um subgenêro cinematográfico.
É como se o filme de Shuchi Talati estivesse num conflito constante entre aquilo que propõe e as suas intenções por trás de cada asserção. Apesar da câmera se aliar aos questionamentos íntimos da jovem protagonista, o olhar os restringe a uma moldura acomodada na ingenuidade inicial. Mesmo se debruçando sobre os afetos envolvidos numa série de descobertas (sendo a relação entre a autoridade das tradições e a descoberta sexual a mais incisiva delas), a abordagem jamais transpõe a etapa da curiosidade, ficando aquém do próprio desenvolvimento da adolescente na trama.
A narrativa é por demais demarcada nas orientações dos seus efeitos para dar conta, com naturalidade, das mudanças de perspectivas provocadas pelo ato final. Daí, as soluções soam simplificadas.
A Sony Pictures está engajada em dedicar esforços para que The Outrun (Alemanha/Reino Unido) dê a Saoirse Ronan seu primeiro Oscar. A atriz de fato merece, tanto pelo currículo quanto por esta performance. Mas o filme de Nora Fingscheidt oferece mais do que um simples Oscar-bait.
Trata-se de um fluxo de consciência capaz de compartilhar não só a instabilidade do vício como as oscilações no convívio com alguém nesta condição.
A proposta de Fingscheidt é, em diversos níveis (estético, temático, psicológico), idiossincrática perante a construção da protagonista vivida por Saoirse Ronan. Com isso, The Outrun assume as ambivalências da personagem e propõe uma identificação mais humana.
É pelos traços do conflito particular que a narrativa se conecta com a intensidade das experiências externas, articulando essa relação entre a entorpecência e as forças da natureza por um fio quase invisível na montagem disjuntiva. A estratégia não é absolutamente sólida; alguns momentos pontuais variam entre a descrição e o didatismo. Mas o comprometimento em se servir do talento de Ronan para fazer deste retrato um exercício sensorial (ao invés do mero objeto psicologizante) tem por recompensa um tônus dramático bem sensível.
Indo na contramão das cores vivas e da aceleração contemporânea que caracterizava o seu projeto anterior, o comentado “Sweat”, a postura de Magnus von Horn diante do expressionismo/surrealismo em A Garota da Agulha (“Pigen Med Nalen”, Dinamarca/Polônia/Suécia) se limita ao viés mais decorativo de suas possibilidades plásticas.
Assim, essa estética pouco contribui substancialmente à estrutura anti-fabular do filme, onde qualquer tentativa de fantasia no proletariado dinamarquês do pós-Guerra é inviabilizada pela ação de um Mal latente, corroendo as estruturas e corrompendo as intenções. As sombras e as linhas íngremes dos décors não ocultam ou sugerem a movimentação dessas forças em cena, antes servem como distração visual para o próprio estabelecimento do abjeto. O efeito postiço dessa atmosfera sombria assume, perante a construção fílmica, a mesma função distrativa do éter (alucinógena válvula de escape dos personagens em meio à desolação social). Com isso, a figura do bizarro se sobrepõe à estranheza das formas.
Por priorizar as consequências ao invés do desenvolvimento de cada acontecimento, muito da sensação de peso do resultado final provém não necessariamente da temática da crueldade, mas do excesso de pontuações que a narrativa acumula.
Três Quilômetros Para o Fim do Mundo (“Trei Kilometri pana la Capatul Lumil”, Romênia) foi o vencedor 2024 da Queer Palm, prêmio similar ao Teddy Award, só que pertencente ao Festival de Cannes. Títulos relevantes como “Carol”, “Portrait de la jeune fille en feu” e “L'Inconnu du lac” também ganharam tal honraria em seus respectivos anos.
Apesar da atmosfera realista, Emanuel Pârvu propõe uma liturgia do movimento dos corpos em meio às locações. A partir das variações contidas nessa dinâmica quase teatral, é possível perceber a influência de uma mecânica autoritária chefiada pela figura patriarcal, capaz de contaminar os poderes da comunidade litorânea onde o evento dramático se desenvolve.
Em contraponto, os principais efeitos dessa soberania nas relações íntimas (a conivência, a corrupção, a censura) se manifestam naquilo que não pode ser visto, pelo menos com nitidez (o extraquadro, a profundidade de campo, o design de som). Se a cena da agressão física ao protagonista Abi permanece oculta pela elipse, a violência ressoa indiretamente na maneira como, por outros meios, as figuras de autoridade replicam a homofobia infligida ao jovem.
A arquitetura formal de Trei Kilometri pâna la Capatul Lumii adere à linha principal do seu discurso: a necessidade de um indivíduo em romper com as raízes para estabelecer sua identidade. Sob o efeito das máscaras caídas e da superação das restrições, o travelling final, preenchido pelo senso de liberdade, é pura catarse fílmica.
Bird (Reino Unido/França/Alemanha/EUA), o mais recente filme da aclamada cineasta Andrea Arnold, funciona espontaneamente quando busca estruturar uma percepção poética para o amadurecimento da protagonista, articulando seu desenvolvimento por meio do discurso metafórico. Além da relação continua entre as figuras dos animais e as alternativas de identificação nessa fase formativa, a sequência de abertura é um exemplo bastante sensível dessa construção lírica.
Por outro lado, nos momentos onde a diretora pretende singularizar o suposto realismo do universo onde a personagem de Nykiya Adams se insere, a abordagem recai numa estetização um tanto problemática. Arnold quer se aproximar daquilo que seria uma forma de expressão contemporânea/millennial, mas acaba atribuindo um verniz plástico às situações dramáticas. Ainda assim, há uma energia inegável na sua forma de registro, como se a câmera canalizasse a tensão concentrada dos personagens, limitada pelas oportunidades reduzidas do meio social.
Infelizmente, dois dos atores mais cativantes do momento são subaproveitados. A dupla conclusão da narrativa atesta que a função do pai interpretado por Barry Keoghan não vai além da alegoria da irresponsabilidade imatura em um sistema desvalido, por mais que o intérprete se esforce na variação detalhada de sua composição. Já o método imersivo de Franz Rogowski não se adequa à caracterização despojada exigida pelo dispositivo da diretora. A exceção é Nykiya Adams: tendo a possibilidade de se encaixar melhor em ambas as demandas, sua performance rende bastante.
Em breve, mais filmes.