Dando continuidade à série de estudos sobre cineastas menos óbvios na cinefilia comum, traço um perfil sobre Gérard Blain a partir de cinco títulos de sua obra.
Conhecido como o rosto inaugural da Nouvelle Vague, Gérard Blain (1930-2000) seguia o arquétipo rebelde-sem-causa a la James Dean na época em que atuou em curtas-metragens de François Truffaut (“Les Mistons”, 1957) e Jean-Luc Godard (“Charlotte et Son Jules”, 1960), ambos em início de carreira. Passou a chamar atenção após estrelar dois longas de Claude Chabrol (“Le Beau Serge”, 1958 e “Le Cousins”, 1959), dramas inaugurais da nova onda francesa. Na década seguinte, trabalhou junto a Howard Hawks (“Hatari!”, 1962), Jean-Pierre Mocky (“Les vierges”, 1963), Marguerite Duras e Paul Seban (“La musica”, 1967) e Costa-Gravas (“Shock Troops”, 1967). Apesar das célebres parcerias, a insatisfação como ator induziu Blain a passar para detrás das câmeras.
Como cineasta, sua filmografia é miúda: nove longas-metragens entre 1971 e 2000, nos quais também participou como roteirista. Neste texto, enumerarei impressões sobre Les Amis (1971), Le Pélican (1973), Un enfant dans la foule (1976), Le rebelle (1980) e Pierre et Djemila (1987).
Muitos estudiosos se referem ao rigor minimalista do realizador Robert Bresson para definir o seu estilo, mas isto talvez seja apenas a ponta do iceberg. Diante daquele método inventivo, a criação de Blain tende à mestria da combinação. Como explicita o crítico e programador austríaco Patrick Holzapfel1:
“Mas o cineasta nunca despoja suas imagens como Bresson fez. Ele está mais interessado nos aspectos pessoais do cinema, o que o torna uma combinação perfeita com Eustache e Pialat. Ele sempre escolherá a emoção antes da imagem, sua percepção antes da forma”.

Gérard Blain desponta na direção já com êxito. Vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, Les amis é um drama sobre o relacionamento entre o adolescente Paul (Yann Favre) e o rico empresário de meia-idade Philippe (Philippe March).
Aparentemente sóbria, a expressividade de Gérard Blain está, no fundo, correlacionada ao funcionamento da forma. O fino rigor das elipses em Les amis lhe permite dois efeitos concomitantes: desapegar das significações redutivas para alcançar o verdadeiro sentido sugerido pelo tema e induzir o espectador, em sua progressão linear, a pequenos retornos precisos.
O relacionamento entre Paul e Philippe nos é apresentado pelo código do affair romântico, enquanto a dinâmica entre eles, estabelecida pela narrativa, alude ao vínculo entre pai e filho. A intersecção consequente desta indefinição está no título do filme: um senso de amizade como a garantia de um interesse genuíno pelo outro. Não apenas em termos de prazer mas também pelo desenvolvimento daquele por quem se afeiçoa. O termo com o qual, ao longo do filme, Philippe se refere a Paul (“padrinho”) já manifesta essa dubiedade. O crítico francês Bernard Boland2 futuramente apontaria uma característica já presente aqui:
“Não há nenhum artifício fetichista em Blain, como se poderia acreditar, com o que isso implica de um jogo brilhante com significado e conotação. A presença deve aparecer aqui em sua totalidade e irradiar-se”.
Atento às inferências psicossociológicas, Blain estabelece uma perspectivação dos espaços onde é importante, além de mostrar aquilo visto por Paul, frisar o próprio olhar do personagem. Pelo impacto da frontalidade, esse método indica como o jovem se sente excluído tanto do subúrbio parisiense quanto do balneário luxuoso de Deauville.
As tentativas de Paul em sair desta lacuna e buscar um pertencimento lhe possibilita exercer o seu desejo de ser ator, experimentando determinados tipos, os quais gostaria que lhe coubessem na realidade - não só o de jovem burguês, mas de alguém com uma figura paterna realmente interessada no seu crescimento. Em retrospecto, toda a sequência de Philippe e Paul em Deauville (na primeira parte), soa como um ensaio para as atividades que o protagonista posteriormente explorará junto ao grupo de adolescentes ricos do balneário.




Essa inclinação à farsa, contudo, jamais indica uma ausência de veracidade. A serenidade da representação natural e a objetividade da descrição e do olhar de Blain permitem ao personagem Paul curtir cada momento daquelas férias como uma fuga de sua realidade hostil e desprovida de recursos. Com isso, a própria direção possibilita um desenvolvimento ativo de seu tema central.
Ao pensar a estrutura de Les Amis a partir dos motivos, o diretor estabelece uma composição acumulativa de correspondências e complementaridades. Elas se revelam em momentos como, por exemplo: a cena onde Paul pega no sono esperando por Philippe remete à uma anterior configuração similar no hotel de luxo, onde os papeis estão invertidos; a conexão, através do som tensionado no extraquadro, entre o acidente de carro fatal e a voz que chama Paul para lhe dar essa notícia; o encadeamento dos planos equiparando Paul e a esposa de Philippe, apesar de suas distintas longitudes perante o caixão do empresário.
Ao enumerar os seus filmes favoritos, o diretor François Truffaut3 comenta a respeito da estreia de Blain:
“(...) esse cineasta em potencial revela-se um cineasta potente, ou seja, lógico. A lógica - lógica do propósito, do estilo, lógica da execução em relação às intenções - constitui, em minha opinião - o único ponto em comum entre os bons cineastas”.
Blain é uma espécie de coreógrafo atento à transmissão gestual, à correspondência dos corpos e à diferença entre a lentidão e a velocidade, configurando as articulações de Les Amis numa unidade sensível. O coming-of-age então improvável se torna possível pelas capacidades regenerativas da memória.

Em seu filme seguinte, Le Pelican (1973), Gérard Blain acumula também a função de protagonista. Na composição do quadro acima é possível detectar uma característica apontada pelo autor francês Ludovic Maubreuil4:
“Em Blain as formas são interdependentes, nada é supérfluo ou destoante. Os gestos se completam, os olhares se correspondem, as durações se encaixam e os sons ecoam. Às vezes até mesmo as harmonias das cores vêm sublinhar a unidade de uma sequência”.
Após um divórcio, a ideia banal é que o filho passe o final de semana com o pai. Recém-libertado da cadeia, Paul (Blain) almeja recuperar a guarda de seu filho Marc (Régis Blain/César Chauveau). A criança está de férias com a mãe e seu novo marido, rico executivo para quem a custódia é mera questão de compra-e-venda. Logo, poucas garantias restam ao pai biológico. Se para Marc este período (vacances) significa uma suspensão da rotina, para Paul é um momento marcado pela indeterminação característica do processo de ressocialização, de uma busca pela reconexão.
Todo o prólogo sobre a descoberta do vínculo paterno é estruturado por meio do som. Não há uma cena sequer do protagonista no cárcere, mas a presença de grades é uma constante nas imagens. Seu retorno à sociedade é pautado pelos mesmos códigos do nascimento de Marc (a declaração de registro e a presença paterna). A melancólica melodia tocada ao piano se torna um motif enquanto o trem-bonde no parque é o veículo para a partida e o reencontro de um elo. Esses são exemplos de conexões que operam um desenvolvimento metonímico na cadeia de sobreposição de anseios e de papeis; afinal, Le Pelican é um filme dirigido, escrito e protagonizado por Gérard Blain e dedicado aos seus filhos.


A consideração rigorosa dos elementos permite à relação entre imagem e som - ou ainda, som e som - abrigar outros tipos de vínculo: temático (entre pai e filho - o protagonista e seu pai; o protagonista e seu filho) e temporal (a pertinência dos lençois do passado no presente). O diretor exaure o voyeurismo à intangibilidade: o controle panóptico é reconfigurado pelo ex-detento em prol de seu filho. O desejo de reaproximação, todavia, sempre esbarra no índice de uma diferença social, sendo perturbado pela estridência de uma formatada chanson pop repetida à exaustão. Toda uma vivência cabe na serenidade objetiva da mise-en-scène de Gérard Blain. Ademais, como recomenda o crítico francês Emmanuel Burdeau5:
“Para analisar o cinema de Blain, é preciso partir do que, deixando sempre o espectador em seu lugar, se impõem à primeira vista em seu cinema; as grandes oposições que estruturam uma obra de uma coerência extrema de estilo e tema: amigo/inimigo, proprietário/possuído, aquele que olha/aquele que é olhado, marginalidade/norma”.

Através das presenças, em suas (re)encarnações sinceras de gestos e olhares, a ausência (o cerne da questão), apesar de inevitavelmente trágica e irremediável, é sentida através de uma comunhão. Se os protagonistas de Blain carecem de uma reciprocidade, seus filmes não padecem da mesma falta. Inevitavelmente, encontram essa correspondência no espectador. Porque há neles uma tendência a se refazer percursos, seja em busca de uma nova oportunidade ou para suprir uma necessidade própria. E se, neste movimento, por um lado, a coerência cíclica das consequências é reforçada, por outro, ela é capaz de reconhecer as variações ali cabíveis. Diferente, mas no fundo igual (ou vice-versa). Graças à sua harmonia incisiva, Le Pelican é uma das mais belas reflexões sobre a paternidade.

Novamente um protagonista Paul e, desta vez, a sugestão de alter-ego se faz mais expressiva. Um Garoto na Multidão/Un enfant dans la foule é o terceiro longa de Gérard Blain.
Vislumbrando as dificuldades na trajetória de formação do personagem principal através de um olhar retrospectivo, o filme parece buscar por uma etapa emocional anterior ao estabelecimento do trauma, caracterizada pela incerteza na descoberta das intenções que caracterizam os relacionamentos (e talvez este seja o atributo mais delicado da inocência, algo que poucos retratos tem a capacidade de abordar com segurança).
Durante o mapeamento das reminiscências há uma opressiva interferência da escuridão. Desde muito pequeno, Paul estabelece uma relação de conflito com as sombras, às vezes quase engolido por elas, às vezes conseguindo destacar-se. Essa peleja contínua adquire novos contornos quando o jovem percebe a funcionalidade do escuro como uma camuflagem em meio ao perigo e à solidão. Na liturgia de colisões frontais promovida pela decupagem de Blain, as figuras de autoridade cercam Paul a todo momento. Por mais que o protagonista busque maneiras de conceber um agenciamento, sua autonomia emocional se mantém refém daqueles mais velhos. Em Un enfant dans la foule as lacunas afetivas familiares refratam como um prisma nas relações sociais, propondo uma inelutável relação de causalidade entre o interior e o exterior.
Diante das sequências sobre a teia de corrupção de menores onde Paul se vê inserido, mesmo com o absoluto rigor de sugestões mantido pelo diretor é inevitável uma forte sensação de desconforto. À primeira vista, tal distanciamento na representação poderia soar como uma neutralidade por parte de Blain, justamente pelo aspecto natural de sua encenação. Contudo, a sincronia de um duplo movimento de travelling (ida e volta) revela que o verdadeiro contrapeso àquele cenário reside na cena (esta sim, explícita) do apedrejamento à francesa que se envolveu com um soldado alemão, desmascarando o extremismo contraditório de uma sociedade em busca de independência nacional. Qualquer ênfase simplificaria os efeitos dúbios das circunstâncias que afetam Paul. O ascetismo anti-espetacular de Blain é, no fundo, um posicionamento deliberado, apostando no discernimento do espectador em meio à ausência de artifícios psicologizantes. Logo, a incômoda indeterminação está relacionada à uma assumida ambiguidade narrativa, presente tanto no exercício da memória quanto na dificuldade natural de compreender emocionalmente os acontecimentos na época em que sucederam. No cinema de Blain a condição humana é por demais complexa para ser resolvida nos limites dos parâmetros sociais.




Como o diretor francês Paul Vecchiali6 aponta em sua crítica sobre o filme:
“O olhar que Gérard Blain lança sobre os seus personagens não é um olhar trêmulo de impaciência (não é o fogo sob o gelo, se preferir…), é um olhar natural, atento e inocente… uma visão de historiador, na medida em que o filme apenas transmite informações ao espectador, apenas a reprodução de atos, sentimentos, gestos que são imediatamente conjunturais. (…) A emoção não vem do que vemos na tela; vem, mais secretamente, desta soma de olhares diretos, deste rigor inabalável com que Blain nos conduz pela mão, lado a lado com o seu herói”.
Un enfant dans la foule é um filme pautado por uma ordenação cuja ênfase cronológica não é necessariamente lógica. Nesse encadeamento de essências o ato de se debruçar ao passado é algo muito presente, inclusive na manifestação do futuro (efeito reflexivo de assumida opacidade através da figura do próprio Gérard Blain). Além da sugestão de um direcionamento para o seu alter-ego, a presença do diretor na diegese é, sobretudo, a confirmação da impossibilidade de um desfecho para essa história. Se o amadurecimento precoce faz com que as necessidades infantis convivam com o ceticismo adulto, os efeitos de Paul perdurariam o bastante para retornar em Un enfant dans la foule? O círculo se fecha, mas isto não é sinônimo de completude.
O filme de Blain não seria o sintoma de uma mágoa ou revolta, mas a manifestação acerca de um processo de luto consigo mesmo. Neste sentido, compreendo que o longa exemplifica uma definição dada pelo crítico brasileiro Luiz Soares Júnior7 em seu texto sobre o diretor:
“Uma das idiossincrasias mais pungentes do cinema deste discípulo crepuscular de Bresson consiste no fato de que uma retórica quase foto-jornalística de revelação do presente – planos frontais e centrais, virulência do contracampo como colisão frontal – sirva de invólucro ao fantasma: tudo o que realmente importa e significa está ausente, irremediavelmente distante, pretérito imperfeito preservado na manhã da primeira infância ou destinado ao crepúsculo iminente”.

Considerando o apreço de François Truffaut por Les Amis, me pergunto qual seria a sua opinião sobre este filme, uma vez que a temática se relaciona a três de seus principais interesses - o coming-of-age, as famílias disfuncionais e o período de Ocupação alemã na França -, manifestados de maneira central em “Os incompreendidos” (1959) e “O último metrô” (1980).

“Para Blain – cineasta da economia narrativa, da depuração, das elipses desconcertantes, dos gestos mínimos –, bastam dois planos, angulados de forma semelhante e dispostos em lugares diferentes na narrativa (porque o cineasta confia em seus espectadores para juntar as peças), para afirmá-lo sem meias-verdades”.
O método apontado por Luiz Fernando Coutinho8 em sua crítica sobre Pierre et Djemila (1987) também se aplica ao filme inaugural daquela década, Le Rebelle (1980), o quinto título do diretor. Em ambas as realizações deste período, o olhar sintético de Blain se revelará mais incisivo em seu interesse libertário diante das instituições sociais, sempre anti-doutrinário. A motocicleta é o veículo característico de uma possibilidade de fuga para os personagens onde se vislumbra um (momentâneo) apaziguamento existencial.
Na terça parte final de Le Rebelle, uma espécie de intervalo é proposto por meio de dois planos semelhantes de Pierre (Patrick Norbert) olhando para uma janela. Não há um contracampo direto daquilo visto pelo personagem, uma vez que se trata de um momento de reflexão. O complemento imediato é, no primeiro caso, a perda da custódia de sua irmã (Isabelle Rosais); no segundo, a reaproximação da menina.
Isso porque o conector indireto desses dois planos é, no fundo, o isolamento de Pierre na área comum do prédio, após uma série de acontecimentos sucedidos nesse ínterim. Em reação à separação inevitável, o protagonista procede com medidas desesperadas numa última tentativa de adequação. Diante do fracasso - para perceber como o estado das coisas permanece inalterado, basta comparar a decupagem e a composição entre as cenas onde Pierre vê o rico empresário comentando a expansão de suas indústrias na TV e, depois, quando o rapaz lê a manchete sobre a sua morte no jornal - , a consequência final é a certeza daquilo que lhe era, desde o início, o mais importante. Le Rebelle aparece acatar a inexorabilidade do destino sem, contudo, alterar nem sua perspectiva (anárquica) nem suas prioridades (os resquícios do elo familiar antes deste ser encaixado numa responsabilidade legal).
A economia de Gérard Blain revela sua eficácia principalmente ao situar, de maneira justa, o protagonista vivido por Norbert diante das concomitantes alternativas pautadas pelo interesse objetificador (os convites sexuais do rico industrial; o aliciamento pelo comunismo radical; a coerção da assistência social), sem comprimi-lo no papel de mártir nem isolá-lo através de um humanitarismo benevolente. O posicionamento de Pierre se dá pelo próprio enquadramento (um exercício do estabelecimento e escolha do ponto-de-vista capaz de evoluir à arte da sutura), concentrando as relações entre o personagem e o meio de modo a evocar cuidadosamente uma urgência, pressão atuante nos limites do tempo e do espaço.
Apesar da precisão, Blain está atento às reações de Norbert, privilegiando o contraste entre os gestos de ataque e o zelo fraterno, ambos intensos como a corrosiva coerção silenciosa infligida pelo entorno. O cineasta alcança uma mistura própria entre a estrutura estática e o movimento dinâmico.






Neste universo corrompido pelo poder (econômico; social; de influência), onde os desejos são baseados na imitação de um modelo (o capitalismo e o comunismo como dois lados de uma mesma moeda), a motocicleta de Pierre parece acelerar sem um destino deliberado. Afinal, a necessidade de sobrevivência se adianta às premeditações de como lutar contra o sistema hegemônico. Mesmo restringida, essa persistência continua em movimento (o único empirismo viável em meio a tantos discursos) e o plano derradeiro de Le Rebelle vem confirmar esse ímpeto como a subjetividade do personagem principal. Sua rebeldia não se trata de individualismo mas um estado de isolamento que se recusa a deixar o instinto libertário ser sufocado pela misantropia.
Curioso como, sob a perspectiva da relação entre o protagonista e o empresário industrial, o longa pode ser visto como uma antítese niilista de “Les amis”; já sob a perspectiva da irmã, Le Rebelle recupera o mesmo coeficiente emocional daquele filme.


Na cena da aula de geometria em Pierre et Djemila, a professora ensina o Teorema de Tales, utilizado para compreender a proporcionalidade entre os vetores: “Um feixe de retas paralelas determina sobre duas retas transversais segmentos proporcionais". Na narrativa, os personagens-título são inocentes e corajosos o bastante para fundamentar um segmento particular em meio à transversalidade de suas origens distintas - francesa e argelina, respectivamente.
A partir desta transfiguração de “Romeu e Julieta” para os ecos da Guerra da Argélia, Gérard Blain estabelece o encontro dos adolescentes como o ponto incólume (em sua beleza natural) na equidistância traçada no subúrbio onde suas famílias vivem. A todo tempo a representação busca as diferenças culturais a partir das similaridades no cotidiano. Essa clareza sintética na cinematografia de Blain é prova cabal de sua ética ao compor o retrato do outsider, sempre seu protagonista. No caso, o equilíbrio proposto pelo amor entre Pierre (Jean-Pierre André) e Djemila (Nadja Reski), vivido no imediatismo do momento e desapegado das tradições, se torna uma via paralela ao cenário extremista onde coexistem. Cabe lembrar que o teorema de Tales faz-se necessário para justificar sua propriedade se não quisermos considerá-la como um axioma.




Abdicando da psicologia, Blain é capaz de revelar os sintomas mais sensíveis da obstinação de seus personagens, ainda que ela beire à obsessão. É possível detectar neles uma vívida essência passional. O diretor, todavia, é metódico o suficiente para evitar tal ímpeto de contaminar a representação. É um sentimento assumido em silêncio, confidenciado, e, por isso, transmitido de forma rarefeita. Nisto, cabe o elogio de Patrick Holzapfel¹:
“O cinema de Blain traz à tona o doloroso assunto de não poder viver como queremos. Assim, ele vive”.
A impossibilidade trágica shakespeariana se direciona para a seguinte conclusão: a união pacífica entre as diferenças só é viável a partir do retorno ao elemento humano em comum, subtraindo a intolerância e o fanatismo (pulsões transmitidas pelo meio social). Limitada ao discurso, a paz seria, ao mesmo tempo, algo puro e idealizado como um romance juvenil. Ao detectar as origens do conflito por meio de uma poética de retornos inscrita na própria decupagem de Pierre et Djemila, a visão do diretor se desvencilha do esquematismo fatalista, ou seja, das limitações impostas pelo determinismo das identidades.




Trata-se aqui do olhar arguto de quem compreende o cinema como a possibilidade de adquirir uma consciência, não auto-centrada, mas disposta a se relacionar com o mundo.
Como sintetiza Ludovic Maureuil4:
“O cinema de Blain, despojado de afetações e de veleidades, depurado das caretas de atores e das palavras de autores, livre dos movimentos de câmera intempestivos, sem dúvida está nu, mas como uma espada”.
HOLZAPFEL, Patrick. “Adidas and Dependencies: Gérard Blain As Director”. Jugend Ohne Film, 2016.
BOLAND, Bernard. “Un second souffle”, Cahiers du Cinéma, nº 294. Novembro/1978.
TRUFFAUT, François. Os Filmes da Minha Vida. Editora Nova Fronteira, 1989.
MAUBREUIL, LUDOVIC. “Nu Como Uma Espada: O Cinema de Gerárd Blain”, Revista Foco, edição 8-9, 2016-2021.
BURDEAU, Emmanuel. “O Coração é um Caçador Solitário: O cinema de Gérard Blain”, Cahiers du Cinéma nº 508. Dezembro/1996. Tradução de Luiz Soares Júnior.
VECCHIALI, Paul. “Un enfant dans le foule”, Image et Son - La Revue du Cinéma, "Saison 76". Outubro/1976. Via Bruno Andrade, Letterboxd.
JÚNIOR, Luiz Soares. Gérard Blain, o proscrito. Revista Cinética, 2014.
COUTINHO, Luiz Fernando. Pierre et Djemila (Gérard Blain, 1987). Phenomena, 2020.