
Há três anos a revista de cinema francesa Critikat elaborou uma série de entrevistas intitulada Perspectives Critiques, onde refletia sobre o estado contemporâneo da crítica junto a profissionais da área. Camille Nevers (pseudônimo de Sandrine Rinaldi), crítica e cineasta que já trabalhou nos Cahiers du Cinéma, na La lettre du Cinéma e atualmente escreve para o Libération, foi a 5ª convidada. Em conversa com Josué Morel e Mahaut Thébault, Nevers narra o início da carreira, comenta tanto a prática da crítica enquanto prática e ofício profissional quanto a experiência como realizadora, enumera opiniões acerca de determinados cineastas e, principalmente, vislumbra uma relação possível entre Macmahonismo e o Feminismo referindo-se à Política dos Atores1.
O Macmahonismo enquanto cinefilia ativa (exercida nos anos 1950 e 1960 sob a égide do parisiense Cinema Mac-Mahon, programado por Pierre Rissient & cia., e definida a partir de textos e manifestos célebres de Michel Mourlet, Jacques Lourcelles, Marc C. Benard, etc.) exaltava a ideia de detectar momentos de fascinação na experiência cinematográfica como uma consequência natural da primazia da mise-en-scène enquanto método de organização de um universo fílmico. Um bom exemplo2 desta perspectiva é a citação de Alexis Klémentieff: “O cinema é secretado pela vida; é a mais total, a mais elevada representação do homem em sua realidade plena, a cada momento”.
Além de traduzir o trecho da entrevista de Nevers onde ela reflete sobre o Macmahonismo e o Feminismo, tomei a liberdade de grifar certas passagens bastante lúcidas para uma possível reflexão futura.
Mac-mahonismo e Feminismo
M. T.: Então, no contexto dessa prática de crítica, em última análise, bastante solitária, houve algum modelo ao qual você se referia?
C. N.: O livro que me marcou para sempre, quando eu tinha uns 15 anos, foi O que é Cinema?3 de André Bazin. É o livro fundamental sobre cinema e, se preferir, sou antes de tudo uma baziniana.
M.T.: Então os Cahiers estavam presentes desde o início.
C. N.: Os Cahiers amarelos4. Eu comecei a gostar dos cineastas adorados pelos mac-mahonianos, antes mesmo de saber que os mac-mahonianos existiam. Mais tarde, como todo mundo, descobri o Dicionário5 de Jacques Lourcelles, que sempre tenho à mão e ao qual recorro com frequência. Acho Lourcelles estilisticamente mais forte que Mourlet. Li recentemente o livro de Christophe Fouchet6, no qual ele defende a ideia de que os mac-mahonianos, no fundo, não eram mais de direita do que os Cahiers amarelos, o que me parece bastante justo. Sinto-me como uma mac-mahoniana mais à esquerda, e para mim, os Cahiers e os mac-mahonianos são, em última análise, o mesmo espírito, digam o que disserem. No final das contas, o mac-mahonismo e sua revista Présence du cinéma ajudaram a preencher as lacunas dos cineastas importantes que os Cahiers haviam defendido por sua vez. Eles têm pelo menos Lang, a base, em comum. Mas juntos, Bazin, os Cahiers e os mac-mahonianos formam uma fita ideal da minha cinefilia. De Hawks a McCarey, de Hitchcock a Tourneur, de Guitry a Rohmer, de Preminger e Minnelli a Cukor, Walsh, etc.
M. T.: No final das contas, mesmo nos textos dos mac-mahonianos, Losey só foi apreciado no início de sua carreira e em seus três primeiros filmes.
C. N.: Sim, e Losey, colocado na lista negra e exilado, não era identificado com a direita. Enquanto isso, eu, que não sou nada de direita, nem um pouco, acredito que podemos ler as críticas dos Cahiers, incluindo Rohmer, sem nos preocuparmos com suas inclinações políticas. Quanto ao Lourcelles, acho que ele nem vota. Isso não é problema dele, não há ideologia nele.
J. M.: Há ainda em Lourcelles uma ideia de pureza e nobreza, menos afirmada que em Mourlet, mas presente quando o lemos acerca do cinema clássico.
C. N.: Sim, em todo caso ele é uma espécie de aristocrata, o que significa que ele nunca precisou trabalhar, foi assim que ele teve tempo de redigir seu Dicionário. Também é um tanto lento.
M. T.: Sobre Contos da Lua Vaga7, ele escreve algo em seu Dicionário sobre a verdadeira natureza do homem, revelada pela guerra, no sofrimento8.
C. N.: Sim, Fouchet cita esta passagem. Particularmente, posso facilmente ignorar isso, enquanto me irrito com os puristas da "arte pela arte" e também com os defensores do "tudo é político" do outro lado.
J. M.: Há algo único em seus artigos dos últimos anos, nessa maneira de articular uma abordagem feminista e cultivar uma herança mac-mahoniana. À primeira vista, não soa óbvio.
C. N.: Escrevi muito sobre cineastas nos Cahiers, mas essa consciência feminista, se é que podemos chamar assim, veio depois. Aos 20 anos, pensei que as coisas estavam quase adquiridas, depois da efervescência dos anos 1970. Mas nos Cahiers, quando falei sobre [Chantal] Akerman, eles não tinham visto os filmes. Em certo momento, propus fazer um dossiê sobre as cineastas que surgiram na época, incluindo Catherine Breillat, Claire Denis, Patricia Mazuy, Christine Pascal, Jodie Foster, Sondra Locke, etc. Toubiana descartou a ideia com o argumento de que Jodie Foster era lésbica e que as outras não eram talentosas o suficiente para apresentarmos um dossiê interessante... Isso não aconteceu e eu só defendi essas cineastas filme a filme. Além de Jodie Foster, que eu havia entrevistado sobre Mentes Que Brilham9 antes dessa conversa deplorável, apenas uma cineasta havia aparecido na capa dos Cahiers nessa época: Tonie Marshall, com Uma História Mal Contada10.

J. M.: As coisas estão caminhando nessas questões, mas sentimos, principalmente na universidade, um certo desinteresse dos jovens cinéfilos em relação à crítica, que, ao olhos deles, não conseguiu captar essas questões.
C. N.: O que não é falso. Tomamos por contradição o que é, a meu ver, uma forma do cinema de sempre andar sobre "duas pernas" - para usar a expressão de [Serge] Daney, que falava da especificidade do cinema de ter uma perna popular e uma perna intelectual. Assim, não acredito nem "arte pela arte", nem no "tudo é político", mas acredito no que Bazin definiu como a impureza do cinema. É como a magnífica repetição da preferência pelo “estranho” na Arte poética de Verlaine – “Pesar palavras será preciso / Mas com certo desdém pela pinça: / Nada melhor do que a canção cinza / Onde o Indeciso se une ao Preciso"11. Então, em termos concretos, no cinema, o que é a impureza, ou as duas pernas? É uma relação entre a representação e o representado, um realismo ontológico do cinema ao qual Bazin dedicou seus textos mais poderosos. Há uma parte do cinema que não é puramente gráfica, e acredito que essa seja sua parte fundamental, que chamo de parte “dramática”. É uma relação com os corpos, com os atores – e esse realismo, do ator em ação, continua sendo o mais precioso para mim. Os videogames estão mais próximos das artes visuais do que do cinema, que tendemos um pouco demais a considerar como tal, visual, "a imagem" em seu sentido mais genérico tendo precedência sobre a arte dramática, sobre a atuação, ou sobre a literatura e a ficção, às quais o cinema tanto deve. O “drama” envolve uma impureza, ao mesmo tempo um trabalho estético e uma qualidade “cênica”, uma história, uma palavra, uma relação com a vida e com a arte como um todo. O conteúdo e a forma, que também podemos chamar de drama e (mise en) scène. Então, para mim, o feminismo e a estética são a continuação por outros meios das duas pernas do cinema, é a busca de sua impureza, de sua trivialidade também. Pessoalmente, como o privado e o público são questões cruciais nos tempos de hoje, o cinema me fez quem sou, a mulher que sou. Em outras palavras, e é isso que, em última análise, me coloca em desacordo tanto com os cinéfilos quanto com as feministas, o cinema não é para mim um instrumento do patriarcado e da exploração das mulheres. Para mim, pelo contrário, foi emancipador e libertador. E, ao dizer isso, estou falando dos filmes, aliás, de tudo o que vi nos filmes de Hawks, Minnelli, Rohmer, Tourneur, Lang, Hitchcock, McCarey, Cukor ou Guitry, estou falando do conteúdo "drama" dos filmes, que é a dimensão crítica, ainda mais do que a política, se quisermos, embora tenha plena consciência de que não é a mesma coisa que a forma como, nos bastidores, fora das câmeras e fora do filme, as atrizes, uma Marilyn Monroe, uma Judy Garland, uma Tippi Heddren, ou as amantes de um ou de outro, eram tratadas pelos pequenos e grandes potentados dos estúdios, ou pelos nossos "autores", etc.
Em todos esses assuntos há uma tensão atual. É temporário, vai passar. E isso se deve, sem dúvida, precisamente à virulência e ao impulso que nos tira do aborrecido mundo patrimonial e patriarcal onde os sedentários querem permanecer. Há excessos e há falsos juízos, sim. Falta distanciamento crítico, a ideologia está em toda parte, de ambos os lados, cinéfilo e feminista. Dizer-se cinéfila feminista é uma posição impura perseguida, mais lúcida ou articulada, que nomeia aquilo que sempre fui e aquilo que o cinema representa aos meus olhos.
J. M.: Você também está dedicando cada vez mais textos a atores e atrizes.
C. N.: Não foram os autores que me fizeram amar o cinema, mas os atores. Foi ter visto Cary Grant e Garbo, e ter visto Fred Astaire e Cyd Charisse dançar, ou Judy Garland cantar. Nunca me senti muito atraída pelo cinema de animação por causa disso. Posso defender um filme que não é grande coisa em termos de direção, mas onde as atrizes trazem algo da ordem de sua própria "política" como um gesto de encenação. Podemos acompanhar sua trajetória e vê-la como uma obra, da mesma forma que reconhecemos isso no diretor ou no roteirista, por exemplo, ou no cenógrafo ou no diretor de fotografia. Não há problema algum em considerar esses profissionais como criadores e como "autores": aquele que escreve, aquele que ilumina, aquele que desenha o cenário, aquele que analisa, pois até o crítico é considerado um autor — cada um tem uma posição estratégica no filme. E são (quase) sempre homens. Mas e quem atua? Acontece que o cinema deve ainda mais às mulheres do que aos homens, nessa função chamada "atuação". Daí chegar a pensar que não é, ou é menos, sério, que se atua não se cria... Curiosamente, para os atores, não falamos de obra, falamos de carreira. E teríamos que nos contentar com as poucas estrelas, cujo nome por si só seria suficiente para "fazer o filme" — veríamos um "Gabin" ou uma "Magnani", um "Bébel"12 ou um "DiCaprio". Mas não, a ideia de obra se aplica a quase todos os atores, sejam eles coadjuvantes ou principais. Nós apenas tendemos a abordá-los não como autores, mas como "personas", máscaras de carne, figuras cômicas ou "tipos", enquanto podemos perfeitamente, como eu faço cada vez mais conscientemente, considerá-los como autores de um filme, de dentro para fora. É por isso que os filmes de atores-autores ainda me interessam tanto, começou nos Cahiers com Jodie Foster, ou Christine Pascal, ou Barbara Loden... E tudo vem de Lupino, certamente, portanto de Lang e Walsh, de como esta atriz, ao trabalhar com eles em filmes tão belos, torna-se (já era) a cineasta que admiraríamos por toda a “sua obra” depois, à frente e atrás das câmeras.
Ao levar isso adiante, venho falar sobre as atrizes-autoras. Ou seja, vejo, por exemplo, em Charlize Theron, ou Laura Dern, ou Drew Barrymore, ou Sandra Bullock, que elas nem precisam mais estar na direção para estar na mise-en-scène (mas muitas vezes elas estão na produção). Em dado momento, eu era quase exclusivamente apaixonada por isso. Eu tinha me tornado tão alérgica à cinefilia baseada na política de autores no sentido mais estrito e que ainda é essencialmente um universo de caras entre si, onde as garotas que os acompanham devem assinar uma forma de pacto tácito que não é mais um problema de feminismo estrito, mas de território, de questões de poder em geral. A partir de meados dos anos 2000, comecei a procurar em outros lugares, parei até de ver filmes dos autores que eu gostava, só me interessava por séries e atores, e mais especificamente atrizes — uma cinefilia feminina, pela primeira vez reivindicada como tal por mim. É muito fascinante porque, ao fazê-lo, ao seguir uma atriz ou um ator, vemos filmes que nunca veríamos de outra maneira. Às vezes, muitas vezes, são filmes inéditos na França, e descobrimos toda uma vertente do cinema, e da comédia em particular, que é um gênero que realmente me interessa, e que de outra forma perderíamos. Trata-se de reviver a curiosidade, o inesperado e suscitar a surpresa sem a qual se está morto. Depois, não sei quanto a vocês, que são mais jovens: como fazem para reacender a curiosidade?
J. M.: Escrever sobre objetos muito diferentes me parece uma boa solução para repensar a maneira como abordamos os filmes.
C. N.: Sim, mas me parece que você também tem que procurar por objetos que ninguém mais viu, exceto você. Foi isso que os mac-mahonianos fizeram, ir desenterrar aquilo que ninguém ainda colocou em seu justo valor. [Louis] Skorecki pesquisou nos refugos da televisão, mas essa perspectiva tem seus limites, mesmo que a ideia seja a mesma. Esta é uma questão que muitas vezes me faço e que faço a vocês: como hoje podemos reativar uma forma de desejo crítico que não seja a gestão administrativa?
M. T.: Acho efetivamente que os atores são um bom caminho alternativo porque isso motiva a ir descobrir segmentos de filmografia que, de outra maneira, teríamos deixado de lado. Descobri, por exemplo, recentemente, o cinema de Hong Kong mais profundamente, que permanece pouco comentado. Houve o período Cahiers com [Olivier] Assayas, mas desde então o discurso se esgotou. Há dezenas de filmes geniais, os de Patrick Tam, por exemplo. Particularmente, me estimula muito ir ver essas filmografias que não são nem americanas nem francesas, mesmo que a minha cinefilia emane dessa última. Acho que as revistas atuais não olham suficientemente para outros lugares.
C. N.: Sim, as revistas cobrem os grandes festivais, mas temos a impressão de que estes também são lugares que centralizam tendências e muitas vezes evitam as margens e os “gêneros”.
A entrevista completa está disponível aqui.
Termo que se tornou popular a partir do livro homônimo de Luc Moullet, lançado em 1993 (Politique des acteurs), ainda inédito no Brasil. Nele, Moullet propõe a investigação de traços autorais na trajetória dos atores hollywoodianos James Stewart, John Wayne, Gary Cooper e Cary Grant; ou ainda, como tais intérpretes, através da repetição de posturas, gestos e expressões, tecem uma assinatura particular capaz de atribuir unidade à sua carreira. (Nota do Tradutor)
Trechos do artigo (então inédito) de Alexis Klémentieff sobre “O Menino dos Cabelos Verdes” (filme de Joseph Losey, 1948) para a revista Présence du cinéma foram compilados em um texto posterior publicado por Pierre Rissient em seu livro sobre o diretor. A tradução do trecho mencionado é de Gustavo Salvalaggio, revisada por Bruno Andrade. (N. T.)
O Que é o Cinema?, livro de André Bazin cuja tradução em português foi reeditada em 2018 pela Ubu Editora. (N. T.)
A fase de “capa amarela” da Cahiers du Cinéma refere-se ao período inicial da publicação (1951-1964), caracterizado pelas capas com ausência de manchetes, portando apenas a fotografia de um determinado filme. Críticos notáveis dessa época: André Bazin, Alexandre Astruc, Alain Resnais, Éric Rohmer, François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Jean Douchet, etc. (N. T.)
Dictionnaire du Cinéma, livro de Jacques Lourcelles editado pela Robert Laffont em 1992. Ganhou uma edição ampliada e revisada 30 anos mais tarde. Inédito no Brasil (N. T.)
Histoire du Mac-Mahonisme, livro de Christophe Fouchet lançado em 2025 pela Books on Demand. Inédito no Brasil (N. T.)
Filme japonês de Kenji Mizoguchi, lançado em 1953 (no original, Ugetsu monogatari). (N. T.)
“Em cada um de seus filmes, Mizoguchi descreve uma parte da experiência humana: aqui, a da guerra, a mais universal de todas, perante a qual toda a existência é fundamentalmente posta em questão. A guerra também é uma poderosa reveladora de personagens: realça o gosto de Tobei pela glória e pelas aparências, e a ganância e a sensualidade de Genjuro”: pág. 326 do Dicctionaire du Cinéma, tradução minha. (N. T.)
No original, Little Man Tate. (N. T.)
No original, Pas très catholique. (N. T.)
Citação a partir da tradução de Augusto de Campos (N. T.)
Bébel é um apelido para o ator francês Jean-Paul Belmondo (1933-2021), um dos maiores astros do cinema francês de todos os tempos, cuja carreira despontou a partir do protagonismo em Acossado (1960), de Jean-Luc Godard. (N. T.)