Max Ophüls (mergulho casual, 6)
notas sobre 5 filmes do realizador alemão, naturalizado francês
Após uma década de experiência no teatro alemão, Max Ophüls (nascido Max Oppenheimer) debutou no cinema como assistente de Anatole Litvak. Semelhante a outros cineastas judeus do mesmo período, partiu para o território francês em 1933, fugindo do nazismo. No início da década seguinte, a Ocupação alemã o obrigou a se mudar para os EUA. A temporada em Hollywood foi de difícil adaptação e, após quatro longas, Ophüls retornou à Europa. Na França, realizou seus últimos filmes, todos aclamados pela crítica.
“O aspecto inventivo nos filmes de Max Ophüls foi justo o de, captando toda uma gama de virtualidades inexploradas na utilização renitente do movimento de câmera, forjar uma determinada modalidade rítmica e um encadeamento de imagens em novas organizações sintáticas. E o clima, a ambiência visual de suas películas, está em perfeita adequação com esse ritmo lavrado para a sucessão de sequências. Fundo e forma se coadunam num todo indissolúvel. O rigor na procura de um apuro visual está sempre em evidência.” (José Lino Grünewald1)
Letter from an Unknown Woman/ Carta de uma desconhecida (EUA, 1948)
No meio de produção norte-americano, a dramaturgia de Max Ophüls revela sua devoção fidedigna à cena através da construção de um sistema fechado, absoluto em si mesmo, regido pela influência oculta das categorias morais. À câmera resta apreender tal funcionamento, ao mesmo tempo que é persuadida pelas variações entre as expectativas e os desapontamentos da protagonista. Ora, a perspectiva do realizador está em plena comunhão com a fantasia de Lisa - e como não ceder à quimera encarnada na face de Joan Fontaine, que pressionada pelo desejo é tão facilmente dada a uma gama de reações, indo do encanto ao dilaceramento? Assistir a Letter from an Unknown Woman é não se apaixonar por Stefan, alvo de Lisa, mas apaixonar-se com ela. Seu desejo mais íntimo é menos a retomada de uma fantasia interrompida (porque é impossível, afinal, nada permanece igual: o músico já afastou-se do piano, o filho dela já tem um padrasto, as paixões são destinadas à efemeridade) do que simplesmente o prolongamento dessa essência romântica, mantendo-a viva no coração de alguém. Que, porventura, só poderia ser Stefan - e, sobretudo, através da sensibilidade de Ophüls.
The Reckless Moment/ Na teia do destino (EUA, 1949)
Em The Reckless Moment as convenções estéticas do noir contaminam a forma melodramática sem erradicar seu substrato. O mal escorrega pelo limite inferior do quadro, impregnando a cena com suas manchas obscuras. No cruzamento de atmosferas se sustenta a teia de um sistema que oprime os personagens vividos por Joan Bennett e James Mason. O peso das circunstâncias, contudo, os leva a uma delicada transmutação: na relação de chantagem, mesmo que ultrajante, descobre-se a cumplicidade.
Se o melodrama doméstico se ressente um pouco com a recusa de Max Ophüls pela decupagem tradicional do campo/contracampo, a paranóia do thriller é beneficiada pelos travellings intimidadores e pela indeterminação dos pontos-de-vista, ambos alimentando uma constante tensão de vigilância moral e social. Já a força feminina não é expressa pelo aspecto sexualmente dominador da figura da femme fatale, nem se restringe à passividade da mulher doméstica condescendente. No protagonismo de The Reckless Moment, Joan Bennett amalgama em si mesma a abnegação do instinto materno (a la ‘Stella Dallas’) e o arquétipo do anti-herói inocente do gênero noir.
A sinergia entre a prudência indefectível de Bennett e a ternura introspectiva de James Mason intensifica a dinâmica contínua de zelo e dedicação que seus personagens se esforçam em sustentar. A compensação pela angústia está numa breve recuperação de valores perdidos: a figura materna (para ele) e o companheirismo conjugal (para ela). É curioso como a performance inconsistente de Geraldine Brooks (praticamente um holograma de Elizabeth Taylor) acaba por motivar os tipos de Bennett e Mason. Uma vez que a torcida pela segurança da jovem carece de empatia, o empenho da dupla improvisada torna-se ainda mais generoso.
Talvez fique a falsa impressão de que a narrativa propõe um happy end. A câmera de Ophüls, contudo, faz questão de atribuir um tom agridoce à situação. Diante da resolução trágica, o choro de Joan Bennett - a única crise emocional da protagonista - é bastante longo, atravessando quatro cenas e perdurando por cinco minutos da metragem (em um filme cuja duração é de 82!). No último plano, por mais que finja naturalidade para o marido, ela é enquadrada pelas barras do corrimão das escadas, escondendo o rosto da câmera.
A trilha musical estridente, regra dos encerramentos no final dos anos 1940, só vem reforçar que a responsabilidade pela aparência do american way-of-life suburbano prevalece sobre os conflitos morais do indivíduo. Ainda assim, o sacrifício do seu (verdadeiro) parceiro não é em vão. A protagonista adquire uma consciência. Anulando de vez as suposições da filha, a mãe vivida por Bennett não está ultrapassada em relação ao modus operandi das relações modernas na metrópole. É a jovem, em formação no mundo burguês, quem necessitava aprender uma lição sobre o resguardo sentimental (o incidente incitante da trama deriva de sua inocência transcrita nas cartas de amor ao namorado pilantra; já sua mãe nunca confessa a realidade da situação problemática quando escreve ao esposo distante).
Mesmo que reste o incômodo, a tragédia permite ao melodrama, em sua dimensão regida pela moralidade, eliminar a aparência subversiva do noir. Diante dos regramentos hollywoodianos, Max Ophüls será mais esperto. Após a desaventurada estadia em Los Angeles, o diretor retorna à França e, em menos de uma década, engata quatro obras-primas antes de falecer.
“Ophüls odiava o plano fixo por ser contrário à vida e à realidade, e este filme praticamente não tem nenhum. O movimento que anima cada uma das sequências e toda a obra contém em si a resposta às questões que o universo Ophüls coloca constantemente: o que é a frivolidade? Onde começa a gravidade? Esse movimento os transforma de um para o outro assim como transforma os personagens em cada momento de suas vidas. É nesse movimento incessante - mas que nunca volta atrás - de corpos, impressões, sentimentos, paixões que Ophüls viu a verdade, ao mesmo tempo superficial e trágica, da condição humana.” (Jacques Loucerlles, a propósito de ‘Madame de’2)
La ronde/ A ronda (França, 1950)
No espetáculo fascinante de Max Ophüls, a sociedade vira um grande baile de máscaras. Os personagens se aproximam conforme a valsa do desejo, evoluindo num ritmo pautado pelo brilho do imediatismo. E é nessa centralidade da volúpia, base da engenharia narrativa, que o apreço pela arte e pelo romantismo se confrontam (o último sendo mediado pelo primeiro).
A ficção circular de La ronde se assume como tal, revelando as fronteiras criacionais sem perder o encanto. Os característicos travellings do diretor são demarcados por um constante caráter revelatório que se aplica não só ao artifício do storytelling mas também ao espaço onde os personagens se localizam, reforçando o aspecto centrífugo da cena. Esse efeito opera não só nas bordas laterais como também no limite superior do quadro - durante as preliminares sexuais entre a atriz e o conde na cama, o tilt da câmera reposiciona o enquadramento no espelho do teto (“Ninguém pode nos ver, exceto nós mesmos”, ela garante ao rapaz e, de fato, a nossa visão está atrelada ao reflexo deles). Em seguida, a fusão na montagem insere um desvio: o mestre de cerimônias vivido por Anton Walbrook, narrador alter-ego de Ophüls, surge cortando manualmente pedaços da película e bradando contra a censura.
A qualidade extrovertida da metalinguagem, no entanto, está sempre atenta ao interior da trama, mantendo o equilíbrio da antologia de maneira a constituir uma visão límpida do conjunto. Perante o tecido social que evoca, a postura de Ophüls é sabiamente amoral. O prazer da sedução opera como um fio invisível, entrelaçando os diversos níveis (da cortesã ao aristocrata) sem mantê-los presos entre si, possibilitando a permutação de funções. Tudo está em constante movimento (o carrossel-símbolo; o narrador-criador; os personagens e seus sentimentos; a câmera; os rolos da película, dentro da câmera ou do projetor; a vida; a Terra em seu eixo de rotação). A fluidez desse sistema abriga discretamente uma intensidade emocional de eficácia impactante.
A alternância como princípio da vida se revela como o grande tema. A partir disso, a eternidade e o efêmero tornam-se conceitos prontamente palpáveis: as horas passam rápido demais quando se está acompanhado, mas devagar se posto à espera de quem se ama. A ação do tempo incide sobre o filme, como se o presente contraísse o passado numa espécie de reflexão cristalina. Essa troca tão simples entre o real e o imaginário atribui um vigor poético a La ronde, aproximando-o de um tratamento moderno. A distração do romance, aparentemente frívola, revela-se fundamental porque origina um bem valioso: a memória.
Não que La ronde preveja a distração do amor líquido. Seu papel é vangloriar o frenesi do romance a partir do reconhecimento de sua ausência. E parece que, quanto mais composto o painel, mais transparente é o funcionamento da poética de Ophüls.
Le plaisir/ O prazer (França, 1952)
Le plaisir assume a felicidade e a melancolia como estados que invariavelmente revezam entre si. O título já entrega: interessante são os interstícios de prazer, sensações breves e fugidias que levam àquelas circunstâncias.
Mas o prazer não é um fim em si mesmo. A narração de Max Ophüls assume uma posição demiúrgica, a fim de revelar o que há por trás das aparências (do disfarce galanteador do idoso; da fachada da casa de tolerância; das molduras que idealizam a relação amorosa entre o pintor e sua modelo) sem necessariamente violar o funcionamento desses artifícios. Daí a estratégia de recorrer aos elementos cênicos para enquadrar os rostos dos atores - o lócus mais fidedigno do êxtase -, de modo a delinear a manifestação do amor, da pureza e da inspiração. São consequências íntimas dos momentos de júbilo, estas sim, indeléveis.
O naturalismo desse caráter romântico, que provém do estilo de Guy de Maupassant, é absorvido por Ophüls através de uma urdidura formal de sensibilidade barroca e dramaturgia clássica. Sem abrir mão do encantamento, essa engenharia estética atribui inventividade à representação. Trata-se menos de ilustrar os contos do célebre autor francês do que alcançar uma expressão autêntica daquilo que o próprio filme elege como motivo principal, conectando as três histórias.
Madame de…/ Desejos proibidos (França, 1953)
Várias interpretações podem derivar a partir da função simbólica do par de brincos nesta intriga. O mais significativo, entretanto, é a transitoriedade que o caracteriza: as jóias indo e vindo conforme as circunstâncias do acaso, alternando valores (afetivos e financeiros) a partir dos interesses. Os brincos da protagonista nunca perdem o seu sentido material, embora adquiram um caráter icônico e até mesmo, na resolução, quase mítico (em relação ao próprio filme).
O regimento minucioso de Max Ophüls em Madame de… mantém um verniz aristocrático com o árduo intuito de desvelá-lo sem pervertê-lo. Os ritos sociais, tão frívolos e artificiais, não deixam de existir. O que se percebe, através da transmutação dos personagens, é a transparência das emoções em meio às formalidades. Os seres se vêem enredados numa mecânica sofisticada onde as aparências não são falsas, mas oportunas, e os sentimentos são sinceros, porém impossíveis. Apesar dos desejos, as circularidades da narrativa os reposicionam no mesmo lugar, restringindo o agenciamento. Por consequência, se perde a vontade de manipular a fragilidade, tornando-a ainda mais evidente.
Os elaborados planos longos constituem a representação de um mundo que está sempre disposto ao escrutínio da sociedade (e dos espectadores). Mas ao mesmo tempo que se utiliza da elegância que orna a aparência dos tratos, Madame de… se regojiza com cada indício sincero de afeto. Em meio ao bailado contínuo da câmera e ao falatório quase intermitente, só resta aos personagens confessarem suas paixões de forma indireta, por meio de negativas, segredos e olhares astutamente interpostos nas pequenas brechas surgidas entre os ritos.
Esses sintomas perturbam as esquematizações individuais mas nunca afetam a plena coreografia da mise-en-scène de Ophüls. O que lhe fazem é atribuir um tipo de intensidade modulada. São momentos onde os recursos cênicos tornam palpável a sensibilidade subjacente nesse ininterrupto teatro da vida humana, cuja graciosa paramentação é incapaz de evitar a tragédia.
“A câmera de Ophüls, em outras palavras, fornece uma perspectiva moral sobre o mundo, uma perspectiva que aqueles dentro dele são frequentemente incapazes ou incapacitados de tomar. (…) Se a câmera não pode, por si só, efetuar as mudanças implicitamente exigidas pelas personagens dos filmes, ela ainda funciona como uma espécie de espectador substituto, uma maneira refinada de processar o status moral do mundo por meios estéticos. Ophüls usa movimentos de câmera para fornecer a articulação estética de uma atitude moral para o público.” (Daniel Morgan3)
“Os mestres da nossa profissão... transcendem tanto a estrutura dramática quanto o diálogo, e criam um novo tipo de tensão que, acredito, nunca existiu antes em nenhuma outra forma de expressão dramática; a tensão da atmosfera pictórica e das imagens mutáveis.” (Max Ophüls4)
GRÜNEWALD, José Lino. Um Filme é Um Filme: O Cinema de Vanguarda dos Anos 60. Companhia das Letras, 2001. p. 37.
LOURCELLES, Jacques. Dictionnaire du Cinéma. Robert Laffond, 1992. p. 867.
MORGAN, Daniel. Max Ophuls and the limits of virtuosity: On the Aesthetics and Ethics of Camera Movement. Critical Inquiry, vol. 38, nº 1. The University of Chicago Press, 2011. p. 127-163.
DUNCAN, Paul; MÜLLER, Jürgen. Film Noir. Taschen, 2018. p. 164.