Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (França/Bélgica, 1975). Direção: Chantal Akerman. Roteiro: Chantal Akerman. Produção: Corinne Jénart, Evelyne Paul. Fotografia: Babette Mangolte. Edição: Patricia Canino. Elenco: Delphine Seyrig, Jan Decorte, Henri Storck, Jacques Doniol-Valcroze, Yves Bical.

O episódio já se tornou um marco na história da cinefilia: quando o British Film Institute deu o título de melhor filme de todos os tempos a Jeanne Dielman (1975) em sua clássica listagem publicada uma vez a cada década, teve muita gente reclamando por Orson Welles e Alfred Hitchcock não revezarem mais o trono. Se, por um lado, listas são artifícios midiáticos e sempre discutíveis, por outro, é inegável que o longo longa-metragem de Chantal Akerman precisou de tempo para ser difundido, discutido e assimilado em sua técnica, forma, estética e discurso.
Durante 201 minutos Jeanne Dielman examina dois dias do cotidiano de sua personagem-título. Ela é uma viúva com filho adolescente que se divide entre os afazeres domésticos, a responsabilidade materna e a prostituição como um expediente regular. A abordagem hiperrealista de Akerman é distanciada: a câmera permanece estática e o registro busca manter o tempo real das ações durante as cenas, fazendo com que os papeis se integrem à rotina da protagonista de maneira casual e sem julgamentos. A dilatação do ritmo, contudo, torna a catarse silenciosa da conclusão ainda mais potente. Ou seja, o minimalismo de Jeanne Dielman assume um olhar frontal mas nem por isso se limita à mera descrição.
Composta por documentários e experimentações em diferentes gêneros ficcionais, a obra vanguardista de Chantal Akerman é caracterizada pela exploração intensiva das propriedades espaço-temporais e pela desdramatização dos eventos. Detalhes visuais e sonoros sobressaem em meio aos planos longos, de movimentos de câmera sutis. No momento de Jeanne Dielman, a diretora belga vinha de seu primeiro longa-metragem de ficção, “Je, Tu, Il, Elle” (1974), cujo retrato da sexualidade feminina foi elogiado pela crítica especializada já na época do lançamento.
Jeanne Dielman não é só dirigido mas também escrito, produzido, fotografado e montado por mulheres (ver ficha técnica acima), algo raríssimo em 1975. E, apesar de seu baixo orçamento, é protagonizado por Delphine Seyrig, a grande atriz do cinema moderno. Entre as décadas de 1960 e 1980, Seyrig filmou com Marguerite Duras, Alain Resnais, François Truffaut, Luis Buñuel, Jacques Demy, Ulrike Ottinger, entre outros (além de dirigir três documentários feministas no mesmo período).
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Quando o filho de Jeanne lê para ela o trecho inicial do poema de Baudelaire “L'ennemi”, temos a impressão de que a mãe está mais atenta à pronúncia do rapaz do que ao conteúdo.
“Ma jeunesse ne fut q’un ténébreux orage;
Traversé ça et là par de brillants soleils;
Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage,
Qu’il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils.
Voilà que j’ai touché l’automne des idées,
Et qu’il faut employer la pelle et les râteaux
Por rassembler à neuf les terres inondées,
Oú l’eau creuse des trous grands comme des tombeaux”1
Diante da interrupção do filho, Jeanne o auxilia no trecho: “la pelle…” e segue acompanhando-o até “des tombeaux”, quando solicita que ele volte ao início. Ao fim, a mãe sinaliza: “Você está pronunciando com sotaque”.

Essa vigilância à aparência formal é condizente à estética de Jeanne Dielman, filme caracterizado pela minúcia obstinada. Sua economia visual é fruto de uma contenção obsessiva, sobreposta em quatro níveis: a composição da personagem-título, a performance de Delphine Seyrig, a fotografia de Babette Mangolte e a direção de Chantal Akerman.
A partir da surpresa provocada pelo final da narrativa, poderíamos inferir que Jeanne não ignorou a clemência pela transformação contida naquelas palavras de Baudelaire lidas ainda no 1ª ato da história, mesmo que o tenha feito inconscientemente. Um movimento psicanalítico frisado pelas sugestões freudianas da trama, elemento introduzido numa conversa dela com o filho onde o rapaz confessa ciúmes do pai falecido. Inclusive, é noutro diálogo noturno que a protagonista, por sua vez, reconhece: “Não sabia se queria me casar, mas era o que as pessoas faziam”.
O controle cronometrado dos afazeres domésticos diários por parte de Jeanne é refletido em vários traços formais do filme de Akerman: na articulação narrativa minimalista; no naturalismo regulado da atriz principal; na eficiência material das composições domésticas hiperrealistas; no método domesticado da direção; no comportamento sistemático da câmera, frontalmente estática. Entretanto, tamanha moderação acaba por evidenciar alguns efeitos vibrantes no interior deste sistema rígido, como o aspecto geométrico da encenação, os detalhes na fisionomia e nas ações de Seyrig, as potencialidades reguladas de determinado objeto no interior dos ambientes cênicos, a duração de ações ordinárias (cuja integridade as põe em destaque sem idealizá-las), um certo agenciamento da protagonista mesmo inserida numa rígida moldura cotidiana e o acúmulo de pequenas mudanças conduzindo-na a um curto-circuito existencial.

Por mais que o regime dos planos médios se altere no exterior do apartamento, dando lugar a enquadramentos mais abertos, persiste uma sensação de resignação similar às pinturas realistas de Edward Hopper. Fora de casa, Jeanne se depara com diversas mulheres em rotinas diversas. A manutenção da lente grande angular e a ausência de contracampos apontam para uma ausência de qualificação dentre elas. Em certo nível, todas poderiam ser também Jeanne, ideia reforçada pelo posicionamento da atendente do mercadinho no final da cena em que ela compra batatas para o jantar, imagem que remete à cena da protagonista sentada em sua cozinha.


O roteiro propõe uma divisão em três dias (conforme o momento em que Jeanne deita para dormir), mas a narrativa fílmica é organizada a partir do encontro dela com três clientes distintos. Como o menu do jantar, há um homem determinado para cada dia da semana. É possível inferir ainda uma marcação bipartite, bem no meio da trama. O funcionamento perfeito da rotina, descrito até os 96 minutos da metragem (momento do segundo encontro), é interrompido por micro-desajustes que vão se acumulando e produzindo uma atmosfera de tensão latente. Cada ação rotineira adquire o potencial de um contratempo; o possível tédio dá lugar à expectativa pelo desvio. É quando a energia despendida pelo controle cronometrado - concentrada pela oposição entre o trabalho contínuo da protagonista e a ausência de movimento da câmera - se transmuta numa sensação de apreensão. Jeanne em silêncio, com o penteado desarrumado, tensa, cortando as batatas para substituir o purê queimado, frustrando-se com a chegada pontual do filho porque isso significa o atraso irremediável do jantar - a partir deste momento, é evidente a dificuldade da personagem-título em lidar com a alteração da rotina e seu efeito-dominó. Para um control freak, este talvez seja um dos trechos mais angustiantes da História do cinema.
A austeridade dos planos, a recusa ao contracampo e o rosto quase impassível de Seyrig promovem uma justa distância à existência da protagonista. A perspectiva de Akerman jamais a objetifica, reconhecendo-na como parte integrante do cenário doméstico onde ela habita. Se há alguma perspectiva de desejo observacional, ela não está localizada no corpo (como garante a ausência de close-up’s e planos-detalhes), mas no ambiente em si, devido à representação hiperrealista construída pela diretora. Como espaço, o apartamento lhe define economicamente (classe média baixa) e socialmente (viúva, mãe, dona-de-casa), mas não necessariamente a revela como indivíduo, nem corresponde às ideias pré-concebidas de sua profissão clandestina (prostituta). Ao longo de Jeanne Dielman, Akerman trabalha o ambiente doméstico como uma moldura a circunscrevê-la, uma imagem pela qual todos a reconhecem, inclusive ela a si mesma (até certo ponto). A estilização do cenário e a duração completa de cada atividade, inscrita na materialidade do filme, dá ao ofício da dona-de-casa o status da ação central da narrativa, presentificando-o na forma de uma experiência compartilhada junto ao espectador.
Até a naturalidade com a qual Jeanne comenta o seu passado, dando-nos pequenas pistas do contexto que a conduziu até ali, possui um tom mecanizado. Soa como a repetição de um discurso que ela ouviu diversas vezes ou talvez tenha dito repetidamente, a fim de convencer a si própria. Ao dispensar a narração em off e os planos subjetivos, Akerman protege os pensamentos de Jeanne e valoriza as potencialidades de Seyrig, cuja fisionomia e movimentos revelam, por meio de uma delicadeza diligente, as transformações na protagonista.
Há brevíssimos momentos de satisfação consciente durante a litania da rotina doméstica que, postos em perspectiva perante a cena do orgasmo, parecem menos profetizá-la do que ressaltar a importância desse prazer sexual como um despertar de consciência. Jeanne corresponder ao pedido de seu filho dando-lhe mais dinheiro antes da ida para o colégio (um contraponto exato ao momento anterior onde ela, no mesmo ambiente, esperou ansiosamente pelo pagamento do cliente do dia anterior), tricotar concentradamente enquanto murmura “Fur Elise” ou curtir um ócio fugaz na cafeteria, são exemplos dessas pequenas satisfações. As mesmas, todavia, são inviabilizadas após o segundo encontro, dando lugar à contidas reações ansiosas perante os acidentes - ela não consegue se concentrar no tricô (ao invés da bagatelle de Beethoven, toca uma chanson no rádio); o filho não lhe pede mais dinheiro; sua mesa preferida no café está ocupada e a garçonete que costuma lhe atender já foi embora. As mudanças provocadas pelo desalinhamento da rotina diminuem gradativamente a agilidade cronometrada de Jeanne, levando ao atraso dos compromissos. O orgasmo junto ao terceiro cliente abriga uma pluralidade de interpretações, mas é, sem dúvida, uma retomada daqueles prazeres módicos, agora numa intensidade diferenciada, destituída da possibilidade de controle cronometrado.
Na cena do assassinato pós-coito, o espelho do quarto proporciona uma moldura alternativa à fotografia de casamento disposta em seu cômodo. Primeiro, ainda sozinha antes do terceiro encontro, Jeanne tira a camisa e fita seu rosto - um breve reconhecimento logo interrompido pelo corte seco que leva ao ato sexual em curso. Despida do cardigã de lã, do avental e do sobretudo (os figurinos-símbolos da alternância de tarefas no dia-a-dia), este é o primeiro momento no qual vemos um reflexo onde Jeanne encara a si mesma. Antes disso, em três episódios no elevador do prédio, a personagem desviava o olhar do espelho frontal à câmera.
O plano seguinte mostra Jeanne pondo a camisa de volta. Agora, o espelho reflete não só ela mas a cama onde se deita o homem com o qual ela teve o orgasmo, cuja reação é representada pelo prazer espontâneo estampado em seu rosto que opõe-se aos movimentos mecanizados do corpo masculino. Surge um novo tipo de reconhecimento: ao arrumar-se, ela olha na direção da fotografia com o marido e da tesoura à direita dela. O instinto assassino e a recognição de um passado estão interligados. A ação de Jeanne em apunhalar o cliente pode ser assumida, então, como uma reação àquele registro matrimonial, conforme as duas molduras (da fotografia e do espelho) são postas em paralelo no enquadramento. Além da inversão freudiana em assumir o objeto fálico e introduzi-lo no homem - a mulher recusa o significado da castração e a consequente produção de mecanismos voyeuristas ou fetichistas -, a catarse da protagonista implica a decisão de não reproduzir as condições daquele passado. Ao fim do apunhalamento, a mão de Jeanne coloca a tesoura de volta à cômoda, mas o faz à esquerda da fotografia, permanecendo o resto do seu corpo fora de campo. Essa desorganização final é mais um sintoma do rompimento da rotina doméstica, antes obsessivamente controlada. A diferença é que, se a desarmonia de outrora foi fruto de um acúmulo de incidentes, a partir do orgasmo, ela é provocada conscientemente por Jeanne.



No fim, resta a certeza de que a cama e a mesa-de-jantar ancoram os elementos centrais em Jeanne Dielman. No último móvel está o objeto que justifica a ação profissional transcorrida no primeiro, o pote de cerâmica onde a protagonista guarda o dinheiro adquirido com os encontros. Opondo-se à primeira cena de jantar (quando a cena era centralizada em torno da comida preparada com eficiência pela protagonista e o pote de dinheiro permanecia fora do enquadramento) e àquela do segundo dia (onde o pote surge na metade da lateral do quadro, em consonância com os contratempos que atrasam a refeição), a última cena na mesa se dá sem o filho, sem a luz acesa, constando apenas o pote de dinheiro e a imagem refletida da personagem suja de sangue, na superfície da madeira.


Aquela imagem inicial da rotina em pleno funcionamento, de fato, jamais será recuperada. Neste rompimento, a autonomia de Jeanne desvencilhou-na perante o aspecto idealizado da vida doméstica. A fisionomia de Seyrig é, mais uma vez, fundamental: sem descaracterizar a contenção física, seu rosto alterna entre distintas reações econômicas. A única certeza neste impulso subjetivo, capaz de ultrapassar os limites do modelo normativo-social, é a iminência da novidade. Pela primeira vez os sons da rua invadem o apartamento sem colidir com os ruídos típicos das ações da dona-de-casa, modulando-se pelo silêncio do espaço.
Nesta subversão do típico melodrama feminino, Akerman promove em Jeanne Dielman não só o retrato de uma mulher que engendra sua existência em prol dos papeis maternal e doméstico. De maneira ambivalente, o longa propõe também um comentário deste quadro social, trazendo à tona uma humanidade subjacente ao verniz de um determinado estereótipo feminino. A partilha da experiência de Jeanne não se detém apenas ao fenômeno, despontando da concentração em uma figura particular para o entendimento de uma situação universal. Ou seja, a participação ativa do espectador não se limita aos estágios iniciais de tédio e curiosidade ou tensão e surpresa, nem mesmo às potencialidades do seu livre agenciamento óptico perante o hiperrealismo dos planos longos e estáticos. A tessitura da engenharia formal, cujo distanciamento recusa a identificação, provoca um outro tipo de envolvimento: tais imagens promovem uma via dupla de compreensão e confronto.
No pressuposto marasmo das quase três horas e meia de Jeanne Dielman, há uma fervura constante. E seus efeitos são imperecíveis.
“A juventude foi-me tormenta brutal,/ Vez que outra pela luz do sol atravessada;/ Raios, chuva fizeram devastação tal,/ Que dos frutos vermelhos resta quase nada./ Ao outono da mente eis que já me foi dado/ Chegar, e pá e ancinho é preciso empregar/ Para que se restaure o terreno inundado,/ Onde a água vem como que covas cavar”.
BAUDELAIRE, Charles. Les fleurs du mal (As flores do mal). Tradução de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019, 1ª Edição (p. 58 e 59).