(continuando daqui)
Como falar de melhores do ano se é impossível assistir a tudo? Não é fácil para o cinéfilo brasileiro comum estabelecer um critério a fim de organizar suas listas anuais. O acesso aos filmes nunca esteve tão difuso. Antigamente, o problema variava entre a demora e a dificuldade de acesso aos títulos internacionais. Não que a incoveniência tenha sido erradicada (a exceção fica por conta dos blockbusters, cuja estreia mundial é cada vez mais alinhada, tornando-os eventos midiáticos incontornáveis), mas outra questão se sobrepõe a esse cenário: a necessidade de tempo e discernimento diante de tanta oferta. Excelentes filmes de 2024 provavelmente escaparam do meu olhar e a quem quiser recomendá-los deixo já minha gratidão.
Considerando os critérios expostos no texto anterior, eis aqui uma menção honrosa à dez títulos que ainda não estrearam oficialmente no circuito brasileiro para além das mostras e festivais espalhadas pelos estados. Talvez em 2025 eu opte por dar um maior destaque a esses diamantes escondidos ao invés dos longas amplamente acessíveis.
물안에서 (In Water) [Coréia do Sul], de Hong Sang-Soo (imagem acima);
La bête (The beast) [França/Canadá], de Bertrand Bonello;
The Sweet East [EUA], de Sean Price Williams;
Le temps d'aimer (Along Came Love) [França/Bélgica], de Katell Quillévéré;
Universal language [Canadá], de Matthew Rankin;
Trois amies (Three Friends) [França], de Emmanuel Mouret;
여행자의 필요 (A Traveler’s Needs) [Coréia do Sul], de Hong Sang-Soo;
Trei kilometri până la capătul lumii (Three Kilometres to the End of the World) [Romênia], de Emanuel Pârvu;
L’empire (The Empire) [França/Alemanha/Itália/Bélgica/Portugal], de Bruno Dumont;
Daaaaaalí! [França], de Quentin Dupieux.
10) Hit Man (Assassino por acaso)
de Richard Linklater [EUA] - estreou em 13/06
A partir da desenvoltura cômica do elenco (em especial Glen Powell, na grande performance masculina do ano), Hit Man operacionaliza um jogo de aparências cujo objetivo é ressaltar o poder de sedução que elas exercem nas relações profissionais e íntimas. Embora não se responsabilize tanto pelo desvelamento dessas mesmas máscaras no quesito formal, Linklater as multiplica e põe o teatro de representações em curto-circuito.
09) Ferrari
de Michael Mann [EUA/Reino Unido] — estreou em 22/02
O Mann de Ferrari não é o esteta da violência, e sim aquele do sistema de forças que confere um contorno dramático à existência dos personagens. Por consequência, a definição de um homem se baseia menos por seus feitos do que pelas crises por ele priorizadas diante das potências que o circundam.
08) Queer
de Luca Guadagnino [EUA/Itália] — estreou em 12/12
Guadagnino prioriza a busca dos fins: registra os momentos antes que eles se percam e capta as nuances do desenvolvimento do protagonista neste percurso. Queer modula uma viagem para dentro de si com destinos surpreendentes - ora irrompe num paraíso artificial, ora num inferno sintético. Em ambos, sua lógica onírica nos precipita numa experiência hipnótica lancinante.
07) Rapito (O sequestro do papa)
de Marco Bellochio [Itália/França/Alemanha] — estreou em 18/07
A doutrina religiosa pode confundir as intenções dos indivíduos, sejam elas benéficas ou não. A percepção, então, torna-se nebulosa; há casos onde a mácula da corrupção deriva do intuito protetor. Diante desta complicação, Rapito não cai na tentação de idealizar a inocência em seus retratos. O resultado é uma denúncia dos efeitos que o poder ideológico exerce sobre as relações afetivas.
06) 悪は存在しない (O Mal Não Existe)
de Ryusuke Hamaguchi [Japão] — estreou em 25/07
Hamaguchi simplifica e aplaina as distintas compreensões humanas perante a natureza para, a partir de um viés cósmico, esclarecer o conceito de causa e efeito entre montante e jusante. É um impacto trágico e ao mesmo tempo poético, um vislumbre da prevalecência dessa metamorfose cíclica que orienta a magnitude funcional do mundo.
05) Juror #2 (Jurado nº 2)
de Clint Eastwood [EUA] — estreou em 20/12
Ao questionar o sistema institucional para apostar na sensibilidade humana como meio de justiça, a coerência formal de Eastwood comprova seus efeitos de grandeza. Nem esteticamente reacionário, nem didático na palestrinha para já convertidos; a modulação precisa de Juror #2 assume o papel de antídoto aos julgamentos sumários tão em voga.
04) Chronique d'une liaison passagère
(Crônica de Uma Relação Passageira)
de Emmanuel Mouret [França] — estreou em 19/12
Apega-se a alguém pelos pequenos gestos, atitudes e olhares. E é também pelas sutilezas que nos afeiçoamos a um filme, num vínculo para além do deslumbramento inicial. Mouret depõe a favor do amor sob uma fascinação dedicada a compreender as particularidades. Apesar dos empecilhos da vida adulta, da ação do tempo e de uma noção ironicamente pragmática que interfere como um sinal dos tempos, o realizador nunca perde a fé no resiliente sentimento entre o casal protagonista.
03) May December (Segredos de um escândalo)
de Todd Haynes [EUA] — estreou em 18/01
É deste a cena mais vigorosa do cinema norte-americano em 2024 - Natalie Portman interpretando Julianne Moore, com todas as artimanhas que uma intérprete pode recorrer: a artificialidade da mimetização em grau máximo (duas artistas hollywoodianas sobrepondo-se; o olhar frontal da câmera; a irrelevância do texto de caráter duvidoso; os cacoetes fisionômicos; a própria dissimulação natural de Moore e os pelejos dramáticos de Portman assumidos ao quadrado) e ao mesmo tempo incompleto (o diretor não permite o chiaroscuro esvair do enquadramento). Haynes dá o tom à cena e estabelece a visão, promovendo um questionamento em torno da plasticidade das aparências e da busca por um possível interior anímico nos corpos que habitam uma idealização.
02) Here
de Bas Devos [Bélgica] — estreou em 02/05
Já o longa de Bavos detém a sequência mais memorável: no encontro entre a gentileza e o rigor, a montagem tece uma progressão de expedientes naturais que é também uma aproximação emocional entre os seres, cabendo à manifestação da incidência solar promover a ambivalência e a circunstancialidade inerentes ao instante do agora. A troca entre o amadorismo espontâneo e a metodologia do conhecimento empírico adquire o status de uma anamorfose profunda, pura ascese da imagem em movimento.
01) Challengers (Rivais)
de Luca Guadagnino [EUA] — estreou em 25/04
Aliada à precisão da decupagem, a edição sincopada de Challengers ressalta um forte sentido ocular do desejo - o qual, por sua vez, é intensificado pela ânsia das escolhas imediatas e suas consequências a longo prazo. Ao intercalar os blocos de acontecimentos como num jogo reativo, a construção temporal mobiliza a ênfase na causalidade e esclarece as relações entre o trio sinérgico vivido por Zendaya, Josh O’Connor e Mike Faist. Reconhecer as possibilidades da duração como meio de caracterizar os estados dos personagens faz com que a diferença entre as velocidades do tempo e dos corpos aponte também o que distingue a causa da consequência, a ação da reação e a intenção do desenlace.
2024 foi especial para Luca Guadagnino, cineasta cada vez mais atento às formas de articular a estrutura das sequências sem corromper o fascínio pelas possibilidades da representação.
E que 2025 seja um belo ano cinematográfico para todos nós.