Todd Haynes + Justine Triet + Celine Song + Takashi Yamazaki + Glen Powell & Sydney Sweeney
filmes assistidos em janeiro/2024 (2ª quinzena)
May December/ Segredos de um Escândalo
de Todd Haynes [EUA]
A obsessão cênica por molduras verticais sugere a aparência de uma idealização nada espontânea. Ao poucos, essa fixação vai revelando uma necessidade vital pelo equilíbrio. Confrontam-se a necessidade de perfeição plástica de Julianne Moore/Gracie, tão opaca quanto os filtros artificiais do seu “american dream”, e a busca incessante pelo índice do real travada por Natalie Portman/Elizabeth, o qual ela crê residir apenas nas sombras da existência humana. Quando tais pólos se desvelam mais e mais, vem à tona as semelhanças que eles refratam entre si.
Gracie oferece ao mundo o mesmo que Todd Haynes perante MAY DECEMBER. Não se trata apenas do louvor ao artifício, mas uma defesa pelo direito de exercê-lo a partir do reconhecimento das especificidades do material de base. Pensando em Foucault: a subjetividade reside nas experiências que derivam de um jogo onde o sujeito se relaciona consigo próprio. Estamos todos fazendo-o.
É daí que resulta o vigor de uma das melhores cenas do cinema estadunidense dos últimos anos: Natalie Portman interpretando Julianne Moore, com todas as artimanhas que uma atriz pode recorrer. A artificialidade da mimetização em alto grau (duas artistas hollywoodianas sobrepondo-se; o olhar frontal da câmera; a irrelevância do texto de caráter duvidoso; os cacoetes fisionômicos; a própria dissimulação natural de Moore e os pelejos dramáticos de Portman assumidos ao quadrado) e ao mesmo tempo incompleto - Haynes não permite o “chiaroscuro” se esvair. É o diretor quem dá o tom à cena e estabelece a visão, promovendo os efeitos de um questionamento acerca da plasticidade das aparências e da busca por um possível interior anímico nos corpos que habitam uma imagem.
Anatomie d’une chute/ Anatomia de uma Queda
de Justine Triet [França]
Construção de narrativa como meio de garantir a liberdade do indivíduo no construto social. Justine Triet volta e meia se confunde na engenharia de um olhar que almeja imparcialidade através do decoro realista dos procedimentos judiciário e investigativo. Ao mesmo tempo, recorre a um naturalismo mais psicológico quando é impelida a enfatizar o foro íntimo em meio a tantas elucubrações penais. Quem compreende a proposta por um viés modular é Sandra Huller. O vigor da atriz preenche a cena. Impávida perante a superficialidade analítica com que julgam seus propósitos, desconfortável com sua intimidade reduzida a artifícios de inquérito: a situação da protagonista vai progressivamente se tornando mais interessante do que a suposta função na intriga de causalidades. Seu desempenho reconhece a ambiguidade como um meio de expressão, intuito para a obtenção de uma liberdade que a própria personagem já tateava antes mesmo da tragédia de seu marido. Huller enxerga, afinal, a aptidão de Sandra Voyter em seu ofício de escritora, instintivamente engajando a narrativização não só para se comunicar, mas representar a si mesma. Como ré e como esposa.
Past Lives/ Vidas Passadas
de Celine Song [EUA]
A aparência de invólucro zen-budista para o “Fear of Missing Out” contemporâneo é dissipada graças à articulação meticulosa da narrativa fílmica. A câmera se relaciona com os personagens por meio de uma consciência espacial capaz de reforçar os níveis de aproximação e distância desses corpos. Recorre-se à locações e objetos cênicos não para induzir sentimentos ou projetar identidades, mas revelar os indivíduos de maneira afetiva. E se (conforme a espiritualidade coreana) há alguma Providência, ela se manifesta na vibração romântica desta câmera que aposta indubitavelmente na reconciliação da memória. Não só perante os elos interrompidos mas também o passado e o presente, a origem e o destino e a infância e a vida adulta. Em meio aos lances ascéticos, Song concomitantemente abriga o pragmatismo de Nora Moon (a receptividade premente de Greta Lee eleva a construção da protagonista), contrapeso que gera uma sensibilidade ambivalente diante do instinto da atração.
PAST LIVES parte da banalizada premissa dramática do triângulo amoroso para propor uma analogia de amplitude universal, ofertando um olhar compreensivo para todos os vértices.
Gojira Mainasu Wan/ Godzilla Minus One
de Takashi Yamazaki [Japão]
Godzilla retorna não só à Toho, sua produtora original, mas também para a atmosfera do pós-II Guerra. O longa se assume como fábula antimilitarista: os ataques do réptil radioativo são uma espécie de desdobramento do estado de destruição generalizada, o que retroalimenta a catástrofe e sedimenta a peleja de uma constante reabilitação, conceito reforçado pelas sombras da fotografia monocromática.
Mas na contramão do “kaiju” original de Ishiro Honda, o filme de Takashi Yamazaki recorre a uma certa evocação romântica do cinema “blockbuster high concept” - centrado em um drama particular de fácil assimilação, o espetáculo obedece à uma progressão tonal dos grandes eventos, valorizando-os narrativamente como clímaces pontuais. Essa cartilha artesanal da clássica aventura Spielberguiana (principalmente a expectativa gerada através da percepção espacial que se dá pela construção da imagem em “Tubarão”) é seguida aqui passo-a-passo em suas funcionalidades básicas, afastando MINUS ONE da imperatividade do bombardeio psicossensorial caracterizador do “blockbuster” atual, vulgo Marvel/DC. Neste sentido, Yamazaki reposiciona Godzilla como uma produto-CGI com maior habilidade do que suas próprias variações hollywoodianas dos últimos vinte anos, presas na entropia da modernização de apelo verossímil.
Ou seja, o Oppenheimerverse está a pleno vapor.
Anyone But You/ Todos Menos Você
de Will Gluck [EUA]
Um veículo para o “charisma-uniqueness-nerve-talent” de Glen Powell & Sydney Sweeney, que se reconhece como tal. Na calculada era das idealizações instagramáveis o romcom padrão tornou-se inocente demais. Daí a necessidade do casal superar uma série de elaborações românticas para detectar o que há de genuíno ali. Não à toa a ironia é uma via incontornável: o tesão dos corpos paga o preço do humor fisico para escoar. Se no fim a espontaneidade permanece inatingível, não restam dúvidas de que Powell detém os atributos necessários para mover uma máquina há tempos enferrujada, outrora intitulada “star system” (Cf. o mais recente de Richard Linklater, “Hit man”). Na última fala do ator - “Puppets, we’re just puppets” - fica evidente que a graça deste produto reside menos na fórmula em si do que na consciência astuta de seus subterfúgios.
Os textos da 1ª quinzena de janeiro encontram-se aqui.