Um dos cineastas mais relevantes do cinema americano independente, Alan Rudolph (1943) é filho do ator e diretor de TV Oscar Rudolph e iniciou a carreira como assistente de direção de Robert Altman. Até o momento, dirigiu 22 longas-metragens (o primeiro é de 1972; o mais recente foi lançado em 2017) e roteirizou 15 deles. Apesar da assinatura estilística, é possível detectar em sua obra certos desvios de interesse, motivados pelo contexto industrial da época.
“O efeito é complexo. Embora rejeite corajosamente todas as convenções da ficção romântica, Rudolph não rejeita o seu espírito: ele simpatiza com o impulso idealizador que cria o romance cinematográfico tradicional. Mas, tendo-o identificado como um impulso, precisa localizá-lo no universo cinematográfico e dar igual peso às forças que se opõem a ele. A guerra entre o subjetivo e o objetivo nos filmes de Rudolph é prazerosamente exagerada para obter o efeito máximo: o romance é avassalador e virtualmente palpável, mas o bom senso o proíbe absolutamente.” (Dan Sallit, “The films of Alan Rudolph”, 1985).
“O terreno de Alan Rudolph é a terra sombria da psique, o lugar onde nossas patologias encontram um lar – onde nossas obsessões, paranóias, medos e fetiches fermentam e fertilizam uns aos outros. Superficialmente, os filmes de Rudolph podem parecer simples melodramas, mas os enredos são apenas os esqueletos sobre os quais está pendurada a carne de seus filmes – suportes para o drama primário, que é representado entre os personagens e dentro deles. Quer o tema seja o descontentamento urbano, o amor e o casamento ou um ato de vingança, o acontecimento principal é a turbulência interna pela qual passam seus personagens” (Rosetta Brooks, “Soul City: An Interview With Alan Rudolph”, ArtForum, 1993).


Remember My Name/ Lembre Meu Nome (1978)
Remember My Name é uma história sobre a memória das experiências que reconhece a dificuldade de presentificá-las.
O retrovisor é o que conecta indiretamente Geraldine Chaplin e Anthony Perkins, cada um em seu carro, logo nos primeiros minutos do filme. O olhar para a frente que se desvia ligeiramente para o alto, mirando o que ficou para trás, assume uma carga simbólica que permeia a narrativa.
A diferença psicológica que se interpõe na vida conjugal quando um é preso (Chaplin) e o outro permanece em liberdade (Perkins) é que, para o primeiro, as memórias são a referência sobre um mundo que permanece em movimento lá fora, vestígios capazes de moldar um alicerce emocional de subsistência. Para o outro, existe a opção contrária: tentar reconstruir uma nova vida para desapegar da inércia diante de uma situação que, ao menos temporariamente, não tem solução. Colocar tais memórias em suspensão, contudo, faz recair noutro tipo de prisão, que não afeta o direito de locomoção mas proporciona uma coagulação afetiva. Considerando ainda quem se depara com essa limitada disponibilidade emocional ao participar da tentativa de reconstrução daquele que ficou em liberdade (Berry Berenson), eis uma sucessão em cadeia de situações cativas. É esse efeito que Alan Rudolph assume no cerne estrutural de seu filme.
De volta à liberdade, a personagem de Geraldine Chaplin tenta se reintegrar nos espaços sociais à sua maneira, apropriando-se dos elementos ao redor como um meio de lembrar sua existência ao resto do mundo. É necessário manter sua imagem viva, principalmente perante seu (ex-)marido. Afinal, estão concentradas na figura de Anthony Perkins as lembranças que a sustentaram durante o período em cárcere. Essa fantasia paliativa agora reivindica o retorno à esfera do real.
Parece que Remember My Name é construído em função deste reencontro. Todos os gestos de reintegração seriam um treinamento que, em tese, tornaria a personagem apta para a reconexão conjugal. É uma evidência do apreço de Alan Rudolph pela esperança de seus protagonistas. A empatia por eles é reinvindicada através de uma identificação inerente à composição do próprio longa, onde as convenções folhetinescas são elevadas a um exercício de alteridade.
Reincidências de imagens, músicas, locações e situações em contextos distintos geram uma diversidade de relações mútuas onde os planos se comunicam por meio de ressonâncias complexas. Um sistema de forças capaz de prover atrações, repulsões e convergências, atribuindo ao triângulo vivido por Geraldine/Perkins/Berenson uma espécie de contágio de impressões que viabiliza a troca de estados e funções entre os personagens (e também neles próprios, individualmente, e em cada dupla, como casal).


Choose Me/ Corações Solitários (1984)
Uma proposta empírica diante das discussões sobre o envolvimento amoroso, onde o romance é menos uma probabilidade fortuita do que um estado da mente. Sem desapegar da autoconsciência, Choose Me experimenta vivamente o romantismo em seu subterfúgio da sedução. Dentre as distintas oportunidades que cercam os personagens e os induzem à permutações, cada fantasia é caracterizada conforme vivências e valores subjetivos.
É o que implica o contraste visual provocado nos ambientes por pôsteres de filmes antigos, enormes quadros de arte moderna, outdoors utópicos e evidências fotográficas, os quais refletem as ilusões individuais no meio comum. Contudo, as expectativas que moldam tais idiossincrasias entram em conflito quando o frenesi da atração se dissipa. Ao mesmo tempo que se detém na transfiguração das realidades, Rudolph está atento à dissolução das aparências (cada close-up em Geneviève Bujold, Keith Carradine e Lesley Ann Warren é extremamente fértil).
A plasticidade onírica com que o diretor atribui fluidez à materialidade de suas encenações reforça o aspecto dialético de uma estrutura onde, apesar dos desajustes cotidianos, persevera a crença na conexão emocional. O dilema está em optar pela idealização alheia ou zelar por sua própria. Até porque o compromisso definitivo é um esforço quase inviável. Experimentar a multiplicidade proporciona sempre um momento único, impossível de replicar.
Quando surge a canção homônima de Teddy Pendergrass, fica claro que a escolha do título não é um privilégio singular, mas o acordo entre duas pessoas dispostas a se vincularem. O ajuste das idealizações surge como uma saída exequível, ainda que humanamente inconstante. Resta a noção de que o debate entre escolhas e renúncias não se limitará ao “happy end”.


Made in Heaven/ Paixão Eterna (1987)
O apreço substancial de Alan Rudolph pelo artifício tinha tudo para se adequar a este romance orientado pelo pensamento mágico. Na prática, o resultado é uma suavização de seus tropos mais característicos, onde as sutilezas se empalidecem e as concessões ficam aparentes. Aqui o típico olhar irônico diante dos acasos da vida funciona menos porque ressalta as fraquezas contidas nas idealizações inocentes do roteiro (sem participação de Rudolph). Mas o romantismo pragmático do diretor possibilita a manutenção de um fio quase invisível conectando as realidades distintas de Timothy Hutton e Kelly McGillis, caracterizando-as conforme a dimensão humana que pauta cada esfera desse casal metafísico. É o que renova a fé nos personagens, independente dos rumos do destino.


The Moderns/ A Arte do Amor (1988)
A recriação do cenário artístico parisiense do entre-Guerras não se satisfaz com o apelo nostálgico. Através de The Moderns, Rudolph reconhece a arte da imagem em movimento como o método de representação que possibilita atribuir sua visão a um cenário pré-existente. O artifício recorre à aparência histórica mas não dispensa sua propriedade fantástica; assim, possibilita a caracterização de um valor intrínseco. Uma aura que lhe é de direito, tão genuína a ponto de materializar a inspiração em cena (como no ressurgimento derradeiro de Linda Fiorentino).
Partindo de uma dialética entre falso e verdadeiro, The Moderns se coloca entre os atos de fazer e usufruir uma obra de arte. A peça é, por si só, um artefato a ser economicamente possuído e até colecionado. Sua verdadeira valia, contudo, está tanto na intenção artística do autor quanto no olhar do admirador porque ambos transformam-na em uma experiência.
Quando justapõe os registros documentais de Paris em sua reconstituição de época, Alan Rudolph não almeja uma comparação entre fato e reconstrução mas joga com as especificidades de cada um. O diretor assume ironia diante do jogo farsesco que movimenta a trama e compõe as imagens. Ao proclamar a relevância do artifício - tal o pintor vivido por Keith Carradine em sua cópia do quadro de Modigliani, cuja perfeição milimétrica é barrada por um toque afetivo -, Rudolph elege a representação de uma “irrealidade real” como o objeto específico do seu filme, libertando-o de qualquer responsabilidade extrínseca.
Embora recorra a certos personagens reais dos années folles, The Moderns se sustenta nos componentes ficcionais. Isso permite a Rudolph obter uma expressividade contemporânea nessa relação com o lastro cultural: além de intercalar a representação naturalista com actualités, o diretor promove sequências videoclípticas, articula aclimatações oníricas e insere flashes expressionistas.
Apesar da fusão estilística, a homogeneidade dentre os personagens propõe uma síntese universal sem deturpar os retratos. Na caça por um alvo concreto (de natureza afetiva, econômica, profissional, artística e/ou social), cada um lida continuamente com a promoção da ilusão de tal maneira que acaba por confundir a si mesmo. O mecanismo da trama, em sua digressão metonímica, esclarece que o êxito só é viável se houver sabedoria para distinguir o falso do verídico - não necessariamente em relação à autenticidade dos objetos, mas a respeito das crenças e valores individuais. Afinal, a mentira sempre carrega um índice do real que cabe àquele que a engendrou e é, portanto, bastante reveladora.


Afterglow/ O Despertar do Desejo (1997)
Nesta espécie de continuidade mais madura sobre as incertezas afetivas de “Choose Me”, o complexo cotidiano dos relacionamentos amorosos é reconhecido como um cubo mágico que necessita de alinhamentos constantes em meio à previsibilidade dos moldes e às realidades instáveis. Manter o elo requer uma vigilância diante das armadilhas do narcisismo insatisfeito e do ressentimento silencioso que redirecionam o reflexo apenas para si, deixando o outro de fora do quadro.
Sempre atento ao potencial do close-up, Rudolph ressalta como a presença de determinado intérprete é capaz de concretizar o substrato mais humano dos temas que aborda. Julie Christie é o componente sublime nesse exercício sensível de confrontar as lembranças e os registros do passado. Até nos momentos fora da mise-en-abyme imagética (em que vê a si mesma em vhs de filmes antigos), a fisionomia da atriz evidencia a vivência da personagem de forma translúcida.
Na conclusão, o encadeamento das cenas torna a circularidade tão palpável que os reflexos apregoados ao longo de Afterglow se desprendem de vez de suas linhas de força para alcançar uma maior compreensão das conexões humanas. 'Somehow, someday, somewhere' se dá ao mesmo tempo, tornando claro os motivos, as vontades e as consequências de cada um, sem juízos ou indulgências. Nunca é tarde demais porque nada é definitivo.
“Hollywood gosta dos meus olhos, eles simplesmente não gostam do que vejo. O que Hollywood faz com seus filhos mais talentosos é pagar-lhes muito dinheiro para que se comportem como artistas, desde que não produzam nenhuma arte. A maioria das pessoas cai nessa. Você sabe que Hollywood, que é um reflexo da sociedade, adora a originalidade, mas também tem muito medo dela." (Alan Rudolph, em entrevista à ArtForum, 1993).
Outros mergulhos: Jacques Rivette; Jean Garrett; Aki Kaurismaki.