O 'cinéma-(en)chanté' de Jacques Demy
a obra do diretor francês é tema do primeiro 'mergulho casual' de 2025

“São estes, os sonhadores, simultaneamente as personagens e os destinatários dos filmes de Demy”
(José Bertolo em “Sombras de sonhos: Les parapluies de Cherbourg”)
Na representação das quimeras, enevoar a realidade com uma atmosfera ilusionista costuma ser a saída mais óbvia e, ao mesmo tempo, menos próxima da percepção humana. Por outro lado, manter o aspecto concreto do mundo e vislumbrar as possibilidades fantásticas que nele subjazem parece algo mais acessível à rotina daqueles que mantém um olho aberto para o sonho. Imagine então agarrar tais possibilidades como quem segura com firmeza um balão propenso a desaparecer no céu pelo mínimo vacilo das mãos. Admirar ou entreter-se com o seu delicado efeito de contrariar a gravidade requer um cuidado atencioso. Um requisito complexo e sensível.
Para evocar a fantasia, os filmes de Jacques Demy (1931-1990) jamais abdicam da trivialidade cotidiana. Comunicar-se com o amado através do canto enquanto os transeuntes permanecem concentrados em suas próprias vidas (Les Parapluies de Cherbourg); recorrer à uma fantasia de asno para romper com o domínio patriarcal (Peau d’Âne); dotar uma montagem teatral com os poderes de redimir elos e suprir lacunas afetivas (Trois places pour le 25); engravidar um homem, em plena onda feminista, só para testar a mobilidade dos papeis sexuais no matrimônio (L’evénement le plus imortant depuis que l’homme a marche sur la lune), etc. São raros os realizadores capazes de tornar o onírico em algo tão enérgico e, por isso mesmo, enternecedor em sua beleza legítima (esta é uma das diferenças do ‘diretor’ para o ‘realizador’, inclusive). Não, Demy não processa uma mecânica de alternância entre realismo e fantasia… isto seria ceder à alienação. Ele propõe a descoberta do extraordinário a partir do mundano, na forma de uma experiência vivida em todo o seu exuberante fascínio.
Este texto se baseia em cinco longa-metragens produzidos no período 1964-1988; ou seja, do seu primeiro rodado em cores, já se distanciando do realismo romântico da Nouvelle Vague, à derradeira realização, onde Demy presta uma homenagem ao cinema musical hollywoodiano referenciando sua própria obra.
“Les Parapluies de Cherbourg” (1964): a ilusão do escapismo
Os personagens de Demy são parte do padrão total — de cor, som, movimento, estrutura narrativa, relacionamentos pessoais — que compõe o filme completo. A cor define um tom sensual diferente em cada filme que nos leva a abordar cada variação do material temático básico de uma maneira diferente. E consegue isso por meio de uma violação sistemática dos princípios cinematográficos normais de cor "realista" e da correspondência de qualidades visuais ao tema e ao clima1.
(Graham Petrie)
Da narração sintética à fluência rítmica de uma planimetria que remete à leveza visual de Max Ophüls, em Os Guarda-Chuvas do Amor a ambivalência do tempo deixa de ser mera virtualidade para se concretizar através de uma mise-en-scène integrada.
No romance entre Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo, a estetização é posta a serviço do realismo: cores vibrantes, diálogos cantados e figurinos simétricos decoram a rotina ordinária no subúrbio de uma Cherbourg melancólica. Daí, a coexistência entre o musical operístico e o melodrama romântico propicia uma relação complexa onde a idealização jamais se esgota nos próprios apelos. Diante de tamanho equilíbrio estético e voluptuosidade technicolor, nossos olhos se excitam até alcançar um platô. Nele, percebe-se a crueza de uma atmosfera social sempre às raias da diegese, proliferando à medida que a ação do tempo se revela inexorável. O suposto escapismo dá meia-volta ao âmago de uma realidade existencial onde os ideais românticos são atravessados por oportunidades, desencontros, renúncias e outras ofertas do destino.
O happy end se afirma na conclusão agridoce, apesar das expectativas do próprio filme (à tese de João Lameira, em que os verdadeiros heróis do filme são os personagens responsáveis pelo entrave definitivo à união do casal central, adiciono uma sequência ainda da 1ª parte, onde o mecânico vivido por Castelnuovo declara seu sonho de abrir o próprio posto de gasolina enquanto Deneuve prefere vender a loja dos guarda-chuvas e se mudar para Paris). Dois dos elementos mais fantásticos da vida real então vêm à tona. O primeiro, o modo como as coincidências são capazes de interferir na causalidade dos acontecimentos. O outro, se relaciona com as capacidades afetivas da memória: Demy disponibiliza um olhar vivamente terno sobre as limitações do romantismo (cinematográfico, inclusive), edulcorando-o como uma recordação radiante. É quando sentimos valer a pena o esforço dos reenquadramentos em prol da manutenção da fantasia.
”Peau d’Âne” (1970): Demy, ingênuo ou astuto?
Em Pele de Asno, quando a fada madrinha vivida por Delphine Seyrig - ela mesma, a musa moderne de Marguerite Duras, Alain Resnais, Chantal Akerman e Luis Buñuel - diz à princesa vivida por Catherine Deneuve que a varinha de condão deve estar com as pilhas por acabar, a descrença é brevemente suspensa. A fada, num lapso, afirma estar velha demais para esse tipo de coisa. Subentende-se que o elemento da história conectado à contemporaneidade é, ao mesmo tempo, démodé - assim como o helicóptero no qual Seyrig surge ao lado do pai de Deneuve, na conclusão. Uma possível piscadela de Demy para quem renega o mundo fantástico erigido em Pele de Asno, filme lançado na virada dos políticos anos 1960 para os extravagantes 1970? Talvez.
Mas também pertence à fada Seyrig a voz da razão que interrompe a possibilidade de incesto entre o rei e a princesa, o grande perigo na fábula de Charles Perrault. Ela põe o complexo de Electra às avessas em curto-circuito e redireciona Deneuve à substituição paterna pelo príncipe do reino ao lado (aquele responsável por reposicioná-la da plebe, onde a moça se esconde através da fantasia do título, à esfera real). E é ainda Seyrig quem eleva a feeria poética do filme, transformando Marc Chagall em Jean Cocteau - por exemplo, haveria presente mais belo do que um vestido da cor do tempo? As linhas eufemística e hiperbólica do fantástico se entrelaçam para tornar o encantamento pela mágica na própria essência fílmica. A partir disso, Pele de Asno ironicamente se afirma não como uma ode à alienação, mas coloca-se à favor da crença na fábula como um manifesto de sobrevivência. Até mesmo contra o patriarcado, se preferirem.
Em sua crítica para a Cahiers du Cinéma, Serge Daney aponta um traço que, a meu ver, se tornaria ainda mais manifesto no último filme dirigido por Demy:
Então, pela primeira vez, ao atender às convenções do conto de fadas, Demy pode sistematizar a demanda que percorre todos os seus filmes: que personagens, filmes e, finalmente, as imagens desses filmes devem emergir de algum lugar, um lugar que, ele próprio... Produção cinematográfica: desde ‘Lola’, o enredo tem sido autorreferencial e apresentado como algo que se reproduz. Ele então se torna simplesmente um jogo (‘Guarda-chuvas’, ‘Duas Garotas Românticas’) de restaurar um circuito fechado de referências em que cada desvio é configurado como uma variante, em que o Mesmo retorna eternamente. Produção de personagens: seja por meio de relacionamentos pai/filho, ou um personagem ocupando um espaço deixado vazio, desempenhando o papel de outro, etc.2
“Lady Oscar” (1979): superam-se os conflitos para alcançar a fluidez
Em tempos onde a válida intenção de representação identitária tem abdicado das nuances ao optar pelo discurso fast-food, é curioso observar como o cinema de Jacques Demy não limita as contradições tão próprias da arte à uma ideia básica de conflito. O realizador busca pela fluidez entre os parâmetros e, com esse movimento, alcança um status de igualdade.
Lady Oscar lida com a construção das fantasias e o inevitável desmantelamento delas. O teatro de aparências na França absolutista (do qual uma naive Maria Antonieta (Christine Böhm) é a representante-mor) proporciona o espaço para a experimentação da personagem-título interpretada por Catriona MacColl em meio aos arquétipos de gênero.
Frustrado com a morte da esposa logo após o parto de sua única filha, o General Jarjayes (Mark Kingston) batiza a menina com o nome de Oscar, criando-a como um garoto. Ao longo do filme, a atenção dos homens limita-se à aparência das identidades, método inconsciente de renegar o que é transmutável. Já as mulheres reconhecem a verdadeira substância das aparências e, a partir disso, percebem como usar a transformação ao seu bel-prazer. É salutar a performance de MacColl jamais abdicar da feminilidade, estando as características masculinas de sua personagem reservadas à exteriorização de sua figura e funções. Com isso, a composição de Lady Oscar (guardiã pessoal da rainha francesa) se beneficia de uma instabilidade onde é possível deslizar dentre as definições alheias, humanizando seu retrato. Analisando o filme através da filmografia de Demy, onde os homens geralmente são passivos e as personagens femininas exuberantes e proativas, Lady Oscar apresenta um diferencial: a protagonista transita, em benefício próprio, por tais tipos de personalidade.
Ao articular uma mecânica de compensação entre a abertura propiciada pelo modelo do conto-de-fadas e o curso padronizado da descrição histórica, a estrutura narrativa promove paralelos e encadeamentos nos quais a própria noção de fluidez ressoa. A dispersão da trama (baseada no mangá de Riyoko Ikeda) jamais se embaralha, servindo ao espelhamento das circularidades nos grupos de personagens. Demy é atento à combinação entre o hieratismo e o dinamismo dos corpos em meio ao aproveitamento inteligente dos espaços; a fluidez da câmera suavemente denota a harmonia e a desarmonia que movimentam os relacionamentos. Diante da opulência de Versailles, o olhar do realizador capta ironia em meio a tanta sofisticação. O deslumbre perante a riqueza significa também um alheamento à pobreza da realidade para além dos domínios do castelo.
Mas, na verdade, Demy é um dialético muito mais sutil, convertendo o princípio cartesiano da vida e cultura francesas — “Eu penso, logo existo” — em “Eu sonho, e sonhar é parte da vida, logo vivo.”3
(Jonathan Rosenbaum)
No fim das contas, não só Lady Oscar se mantém fiel ao desígnio de proteger algo nobre. Ela influencia André (Barry Stokes), seu amor de infância, a fazer o mesmo. A mudança é uma questão de referencial - antes exteriorizado, agora se volta para uma convicção interna. Lady Oscar alcança o esclarecimento propulsor da liberdade identitária de sua protagonista sem renegar o encanto que reveste as idealizações.
“Une chambre en ville” (1982): o outro lado de “Les Parapluies de Cherbourg”
O cinema de Jacques Demy é frequentemente um cinema entre sentimentos. O êxtase e a melancolia, a nostalgia por uma França profunda e a insatisfação pela condição da França contemporânea, a idealização do amor romântico e o desejo de expor sua própria
fantasia.4
(Filipe Furtado)
Embora hajam vários pontos em comum dentre as duas operetas, em oposição ao desenvolvimento contíguo de Os Guarda-Chuvas do Amor, o encadeamento de causalidades em Um Quarto na Cidade se dá por uma lógica metafórica de semelhanças e alternâncias.
As cores dos figurinos não só contaminam os decórs, transformando-nos em símbolos de uma determinada presença, como contagiam outros personagens, intercambiando significações. O quarto de hotel onde Richard Berry possui o corpo de Dominique Sanda concretiza a fusão entre o quarto de infância (dela) e o quarto alugado (por ele) - um mesmo comôdo sob o domínio da personagem interpretada por Danielle Darrieux (mãe e senhoria). Em último nível, a transmissão se dá também no sacrifício pelo elemento mais valioso para cada personagem, onde as idealizações políticas e românticas se equiparam no fechamento trágico. O “e se…” melodramático não encontra mais espaço, dissipando assim a tensão entre possibilidades e escolhas.
No filme de 1964, a ilusão romântica sucumbe e dá lugar à necessidades econômicas mais realistas. Em 1982, a pressão ideológica cerceia os afetos. O amor vagueia de maneira instável entre os espaços temporários de Um Quarto na Cidade, ou ainda, circula pelos ambientes como a voz do canto. Dentre as semelhanças entre os dois longas, sobressai aquela mais essencial à poética de Demy: a fluência de uma mise-en-scène cuja realização não é voltada ao apagamento de seus traços, mas à visibilidade de seu refinamento formal.
“Em tais momentos de desespero ia ver, por exemplo, “O Rio”, de Renoir, e saía — como posso dizer isto?… Hoje em dia, quando se fala de confronto e revolução no mundo, eu faço a minha própria revolução quando saio de um filme de Renoir, e posso dizer que para mim é disso que se trata o cinema, é o que me dá coragem, um desejo de viver e de continuar a viver. E nos meus filmes é tudo o que experimentei”.
Jacques Demy em entrevista à ‘Film Comment’
”Trois places pour le 26” (1988): transformar o mundo num palco ou encaixar a vida nele…
O encanto do derradeiro longa-metragem de Demy está na abrangência de sua capacidade reflexiva. Não se trata, contudo, de uma mera síntese saudosista de sua própria obra. Trois places pour le 26 propõe um sistema de tensionamentos e distensões perante os traços mais característicos do autor (convenções, estética, motifs, etc). O filme é um amplo simulacro referencial de seu universo artístico através das memórias do ator Yves Montand. Constantes na filmografia de Demy, o apreço pelos musicais e a reverência ao cinema norte-americano são materializados na presença de um célebre protagonista interpretando a si mesmo em meio à montagem de um espetáculo teatral auto-biográfico. O amor se expressa através da música e a música é indispensável ao amor - o conector indispensável entre eles é a fantasia como expressão artística.
Perde-se de vista o que é de Demy e o que é de Montand, o que é verídico ou ficção, o que é nostalgia ou expectativa; o diretor manipula tais parâmetros numa urdidura criacional onde o fiar são as coincidências e as causalidades. Consequentemente, Trois places pour le 26 transita com fluência neste circuito, sem se apegar às definições. Demy recorre à estrutura convencional do musical cinematográfico (diálogos interrompidos por momentos de canto-e-dança), porém, ela serve de base para algo mais específico: a assimilação convergente de expedientes diversos - videoclipe, publicidade, teatro, cinema - como método de revitalização do próprio gênero.
É por isso que as mentiras trocadas entre os personagens possuem unicamente a função de fundir o sonho à realidade, da mesma forma como se amálgama artisticamente inspiração e invenção (onde a segunda se adequa ao legado da primeira, sem corrompê-la). O cinema alcança então uma espontaneidade sofisticada, no nível do “sonhar acordado”. Admito ser uma interpretação delicada, mas creio que é nesta zona indefinida onde brota o (falso) incesto entre Montand e Mathilda May, polêmico indutor da intriga. Para o realizador, tal consequência é fruto não da ordem sexual, mas da confusão entre as lacunas afetivas.
Por sua própria natureza como gênero popular, o musical despoja Demy da exigência de oferecer uma explicação para os motivos de seus personagens e o impacto de suas ações. Ao não abordar atitudes sociais, Demy destaca a ênfase que abunda em sua obra em desejos instintivos sobre a moralidade externa5.
(Darren Waldon)
Trois places pour le 26 eleva a poesia do realismo onírico de Demy a outro patamar. O filme estabelece um redirecionamento da coexistência entre atmosferas distintas (tão típica em sua filmografia) para uma esfera relacionada à temporalidade: a nostalgia se interliga à expectativa não só através da fantasia - as sequências musicais servem a ambos -, como também da própria engenharia. Ou seja, a nostalgia se torna substância da imagem em movimento e, uma vez presentificada, o caráter fugidio da representação a impede de estagnar-se, sendo assim impelida ao futuro. O anacronismo é reivindicado a fim de propor uma dessincronia com a atualidade, conquistando o presente absoluto: o filme só é capaz de concretizar a si mesmo sendo o produto de uma série de transformações ocorridas em seu devir.
Esta preciosidade há de permanecer invisível para os que creem na estagnação do cinema de Jacques Demy a partir dos anos 1970. Para compreendê-la em sua totalidade é necessário estar aberto às mudanças desta fase posterior ao êxito comercial, onde o aparente esgotamento da forma não passa de uma busca pela depuração e do acolhimento de um certo ceticismo pós-moderno. Três Lugares para o 26 é a consequência de um movimento interiorizado que, no fim das contas, propõe a reversão do olhar, mantendo-no aberto, à espreita de novos encantos a brotar do real.
PETRIE, Graham. Jacques Demy. Film Comment, inverno de 1971-1972.
DANEY, Serge. Peau d’Âne. The Cinema House & The World: 1. The Cahiers du Cinéma Years 1962-1981.
ROSENBAUM, Jonathan. Not the Same Old Song and Dance: The Young Girls of Rochefort. Essential Cinema: On the Necessity of Film Canons.
FURTADO, Filipe. Um Cinema Entre Papeis e Lugares. Catálogo da mostra “Jacques Demy: Entre o Realismo e a Fantasia”.
WALDON, Darren. Melodic Reconfigurations: Demy’s Musicals. Jacques Demy.