Em 30 anos de carreira cinematográfica, Valerio Zurlini (1926-1982) dirigiu oito longa-metragens. Com o último, venceu o David di Donatello e o Nastro d’Argento de melhor direção. As influências pictóricas e literárias são marcantes em sua obra, assim como o temperamento existencial inclinado ao niilismo em divagações por ambientes históricos. A partir dos anos 2000, retrospectivas ao redor do mundo renovaram o interesse em sua filmografia.
“A psicologia é a finalidade de seus filmes. Mas não uma psicologia comum, onde os problemas de cada um dos personagens se resolvem, sempre pela palavra, no final do filme. Em Zurlini, no entanto, todos os problemas chegam a seu nível de irresolução, mas o grande diferencial de seu cinema não é esse: é que essa psicologia é divina, é repleta de uma moralidade que parece emanar de Deus. Assim, a manifestação divina se dá sempre a partir das situações psicológicas, mas só transparece à medida que a câmera parece não filtrar o essencial do momento. Esse "essencial" bate com toda a força direto no espectador.” (Ruy Gardnier1)
“Valerio Zurlini sempre teve sua musiquinha particular, à parte do show, algo como um “neoconformismo bem-humorado”. Ele não se esforça para ser clássico, ele é. Isso significa que ele não está preocupado com o contexto político-social? Claro que não. Só que esse contexto, para ele, fundamenta a obra em vez de estendê-la em prolongamentos didáticos.” (Paul Vecchiali2)
“Uma questão que se impõe, portanto, é: qual o lugar de Zurlini no grande cinema italiano do pós-guerra. Ele não foi um inovador, como Rossellini ou Antonioni, não foi incisivo como Visconti ou Pasolini, não foi bombástico e popular como Fellini. Esteve próximo do melodrama, mas, ao contrário de um De Sica, driblou-o seguidamente. Zurlini é um intimista, por certo, mas esse é o tipo de qualificação que - Japão à parte - soa quase como desabonadora. Não é preciso diminuir a contribuição dos cineastas maiores (ou mais famosos) para incluir Zurlini entre eles. Seus filmes são como monolitos que, quase 20 anos depois de sua morte, permanecem intocados, legíveis (isto é: ainda a ler), carregados de um mistério que não se desprega de seus personagens, que não se deixa superar.” (Inácio Araujo3)
Estate violenta/ Verão Violento (1959)
O regime formal de Estate Violenta propõe uma centralização motivada em objetos, os quais não simbolizam os personagens mas viabilizam as situações nas quais eles se envolvem, demarcando-as - exemplos: o cigarro compartilhado; a troca de focos de luz entre a lanterna e o fósforo; o disco de ‘Temptation’; a degradação da estátua de Mussolini; o documento de dispensa militar prescrito, etc. Esse apelo souvenir não se impõe de maneira iconográfica mas remete aos lençóis do passado que enredam o casal principal, instituindo uma moldura no presente e pondo limites às possibilidades futuras.
Experienciar o amor é ater-se ao instante e o prolongamento disso é o desafio de Jean-Louis Trintignant e Eleonora Rossi Drago. Amar, em meio à Guerra atravessando implacavelmente as relações, torna-se um ato de resistência. Estate violenta é, em essência, ultrarromântico. A progressão de Zurlini rumo ao melodrama alcança uma intensidade convicta diante das grandezas que restringem os personagens interna e externamente. As emoções latentes e a tensão do ambiente se entrelaçam, se afastam, se questionam e se reforçam. Tal mecânica se torna a substância do próprio filme, promovendo uma imersão no verão italiano de 1943 onde o idílio das férias é constantemente interrompido pela iminência do ataque bélico. Uma ressonância que parece despontar justamente daqueles objetos - estopins para a aproximação ou distanciamento dos corpos -, até alcançar um nível catastrófico na sequência final. O saldo não é o extermínio total. Em cada momento daquele desenlace, entretanto, sobrevive algo não menos letal. A regulação das forças vem afirmar a irreconciliação, motivo central de qualquer conflito, como algo definitivo.
Cronaca familiare/ Dois Destinos (1962)
Recém-aproximados, os irmãos vividos por Jacques Perrin e Marcello Mastroianni compartilham a curta memória daquilo que os une em parentesco como um meio de transpor a distância do tempo perdido. Logo nos é advertido que a ausência de Perrin é irremediável; daí, é como se a narração de Cronaca familiare buscasse compreender o luto de Mastroianni possibilitando-o de consumar conosco aquele mesmo tipo de partilha. Neste exercício, contudo, há mais do que a simples lembrança. Nele reside uma confissão tão dolorosamente valiosa, tão protegida - afinal, a narrativa começa e termina com o protagonista de costas para a câmera -, que Zurlini conduz e lapida com um zelo benévolo quase materno. A fé no laço familiar é capaz de suplantar as convicções e a severidade do envelhecimento.
A sabedoria da decupagem em reconhecer as vicissitudes do elo sanguíneo (ora uma barreira, ora um vínculo); a exatidão de uma encenação garantindo a redenção solene ao destino inevitável; o technicolor que, na articulação básica entre luz e sombra, atribui densidade ao material dramático: o filme de Zurlini existe em função de assimilar algo específico e é com delicadeza que o conteúdo expressivo abnega-se à angústia de Mastroianni. A morte é, decerto, incontornável, mas o legado da memória é uma herança infalível. Cronaca familiare não só vislumbra o rancor sombrio se esvaindo pela dinâmica de uma presença luminosa como alcança também o milagre da recuperação da fé na existência.
E onde tais noções tão intangíveis se encontram? No sentimento mais elementar. Esta é uma história de fraternidade mas, sobretudo em sua representação, trata-se de um amor quase espiritual. A inviabilidade de sua continuidade física não impede que se perceba uma série de intimidades, como: os diferentes níveis de aproximação entre os corpos, a intensidade oscilante das emoções, o lirismo que adorna as expectativas silenciadas e o alinhamento das diferenças particulares conforme a aceitação destas. São as permutas de sacrifício que induzem a um equilíbrio tão fino e fundamental, quase da ordem divina. Daí a importância que os olhos e as mãos de Mastroianni (monumental!) adquirem nesse movimento emocional entre passado e presente, onde se tateia a recuperação dos laços para esculpir uma reminiscência.
Le soldatesse/ Mulheres no Front (1965)
Agonia vs graça: Le soldatesse lida continuamente com o paradoxo da sobrevivência - o estado de estagnação particular em meio a um cenário absolutamente instável - constatando as circunstâncias a partir dos efeitos de um fino entrelaçamento de perspectivas. Tal impressão desenvolve, de forma metonímica, a articulação magistral das grandes sequências desta trama composta por um grupo de prostitutas liderado por soldados italianos.
Expressando-se obliquamente entre a aparência realista e as convenções dramáticas, a encenação opera uma modulação capaz de evidenciar a natureza da relação entre os personagens e da situação em que se encontram. É uma engenharia anatômica que reduz o quadro aproximando os corpos (não só vislumbrando o despontar de um instante de ternura como para mantê-lo a salvo) e amplia a cena nos momentos em que a tragédia bélica se impõe (seja permeando as bordas do quadro ou intervindo no encadeamento das imagens).
Zurlini dispensa a isenção polida do academicismo e o vitimismo da dramaticidade microscópica. Ao reconhecer a capacidade fílmica de engendrar uma narração, Le soldatesse alcança uma desenvoltura estimulante. Através da arregimentação dos componentes dramáticos, prefere apostar na inteligência do espectador, na sua capacidade de discernir as variações contidas no sistema de personagens e na maneira como as incertezas do meio os influenciam. É o que retroalimenta a complexidade psicológica dos retratos e propõe um teor humanamente ambíguo às ações e reações. As possibilidades de julgamento moral e social não estão contidas na encenação do diretor, mas derivam das circunstâncias que ela proporciona.
Uma vez que a trama de Le soldatesse se situa em meio aos conflitos da II Guerra Mundial (e o ano de produção insere o longa no “pós-neorrealismo”), o valor da memória, caro a Zurlini, ganha uma amplitude histórica. Mas isto não se orienta à reconstituição dos fatos (cobrança verossímil tão requerida hoje em dia), e sim à capacidade interna de valorizar um instante de amor em meio à tragédia absoluta, um lampejo de delicadeza apesar da desilusão irremediável. O longa se afirma como oportuno porque traz à tona uma reflexão acerca de um risco inerente à existência no mundo atual: a perda de uma sensibilidade individual, não só ligada à compaixão mas à capacidade de discernimento.
La prima notte di quiete/ A Primeira Noite de Tranquilidade (1972)
Há tantas sequências sublimes aqui que me pergunto como foi possível remontar uma versão com 41 minutos a menos para distribuir em alguns países (inclusive o Brasil). Enfim…
No momento acima (que eu duvido ter sido limado) uma demonstração dos elementos que fazem desta obra-prima uma experiência de maravilhamento em sua organicidade, o alcance de uma fluidez demiúrgica por meio da precisão. Centralidade do ator + evidência do mundo: a incandescência na pista de dança conecta os corpos e estabelece as relações ao mesmo tempo que traz à tona o raio de alcance do desejo, manifestado pelo olhar. O tempo pára através da banda sonora que ecoa no ambiente: o imperativo na canção de The Supremes & The Four Tops (“You gotta have love in your heart/ You gotta have a song on your lips/ You gotta let freedom roll”) é interrompido pela resignação na voz de Ornella Vanoni (“Ho perso ancora ma/ Domani è un altro giorno, si vedrà”). Atores com semblantes recônditos, dotados de inflexões propícias à compreensão de seus personagens evasivos, determinados a recusar o atalho da exteriorização. Seus corpos imantam o engendramento de Zurlini, o qual, por sua vez, se dá na e pela mise-en-scène: uma purgação que se manifesta não só no entrave luminoso de forças cênicas entre o azul e o vermelho mas na significação da arquitetura através da espacialidade das locações, na coreografia da sombra que esculpe o quadro e no fluxo dinâmico da encenação consoante à construção narrativa (mas jamais submetida a ela). E, mesmo assim, ultrapassa-se a técnica: há buracos, vazios, silêncios. Uma complexidade interior é transcrita nos planos.
Ao longo do filme, o lirismo põe em curso o sentimento que orienta os seres numa harmonia promovida pela demanda interior. Tudo flui para aproximar os três personagens deslocados, incapazes de encaixar-se tanto em suas rotinas protocolares quanto nas tentativas de fuga. Alain Delon se envolve não só com a errância de Sonia Petrova mas também com as indefinições de Giancarlo Giannini, aquele cujos olhos azuis refletem os do protagonista. Um genuíno reconhecimento de almas em meio a uma Rimino seca, enevoada e inóspita. A atenção dada ao tempo próprio de cada um desses indivíduos e à compreensão particular de seus sentimentos se faz presente também na maneira como a retidão é mantida até a (auto)permissão para a consumação do prazer.
Após uma longa insônia, eis que um breve romance de sonho antecipa a primeira noite de tranquilidade.
Il deserto dei tartari/ O Deserto dos Tártaros (1976)
Na contínua variação entre os líderes do forte Bastiani (na visão de Zurlini, a influência não está necessariamente ligada à patente), os círculos e as complementaridades do poder orientam à uma espécie de auto-corrosão em prol dos efeitos coletivos.
Em meio ao exílio no deserto, a duração interior se torna o ritmo do mundo e a moderação serve à essência das coisas. Nesta adaptação cinematográfica do romance de Dino Buzatti, o discurso se converte numa grandeza capaz de transformar tempo e espaço sem alterar o equilíbrio classicista e o sentido do texto. A mudança do todo vai se adaptando ao meio, fundindo-se à forma, de modo que a angústia dos personagens e os questionamentos do autor encontram um mesmo rumo na própria produção da imagem, onde aparência e aparição se tornam intrínsecas. Através do estado de espera dos soldados, o realizador depura a frieza do regimento militar (a hierarquia, a disciplina, a autoridade) para se aproximar de uma sensibilidade relativa à condição existencial (a cooperação, a união pelo propósito, a generosidade).
A derradeira película de Valerio Zurlini é um épico fantasmagórico, intimamente lírico.
"Ao fazer um filme nunca passou pela minha mente que eu estava construindo algo que seria exibido no cinema um mês depois. Isto pode parecer estranho, mas construir deve ser para a eternidade. E eu digo isso sem a menor intenção de parecer presunçoso. Eu acredito que as coisas que resistem ao longo do tempo são aquelas que são feitas com muita sinceridade, honestidade de meios e profunda verdade interior; então elas vão resistir, como coisas muito pequenas, mas resistirão. Algo gigantesco, mas concebido sem sinceridade, está destinado a durar pouco. E visto que eu nunca quis fazer coisas que duram pouco, sempre fiz coisas pequenas. Mesmo assim, estou convencido de que se você ver qualquer uma dessas pequenas coisas novamente, você descobrirá que a verdade do momento em que foram feitas ainda está intacta. Meus filmes são filmes que não envelhecem. Você pode até pensar que eles são horríveis, mas isso eu não posso julgar." (Valerio Zurlini4)
Outros mergulhos: Jacques Rivette; Jean Garrett; Aki Kaurismaki; Alan Rudolph.
GARDNIER, Ruy. Zurlini e a dissociação. 2001.
VECCHIALI, Paul. La prima notte di quiette. La Revue du Cinéma, n. 267. 1973 (apud Bruno Andrade).
ARAÚJO, Inácio. Valerio Zurlini exibe a delicadeza de sua obra. 2001.
BIARESE, Cesare. A passionate, bittersweet existence (trecho de uma entrevista dada a Jean Gili em Le cinéma italien, 1978). 2016.
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